quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Conversões Desejadas




                                              - Conversões Desejadas-                                      

                                    Nº 1282
Sermão proferido na manhã do dia do Senhor, em 5 de março de 1876,
Por C. H. Spurgeon,
No Tabernáculo Metropolitano, em Newington, Londres.
A mão do Senhor estava com eles, e muitos, crendo, se converteram ao Senhor.” Atos 11:21
Os irmãos que viviam juntos na comunhão da Igreja de Jerusalém foram dispersos pelas tribulações que sobrevieram a Estevão. O seu Mestre disse a eles que quando eles fossem perseguidos em uma cidade deveriam fugir para outra. Eles obedeceram Seu comando e no caminho da fuga da perseguição eles fizeram longas jornadas – longas jornadas, de fato, para aquela época, na qual a viagem era excessivamente difícil. Mas onde quer que eles se encontrassem, começavam, de uma vez, a pregar Jesus Cristo, de modo que a dispersão dos discípulos era também uma dispersão de boas sementes em campos mais amplos. A malícia de Satã se tornou em misericórdia de Deus.
Aprendam com isso, queridos irmãos e irmãs, cada um de vocês, que aonde quer que vocês sejam chamados para ir, vocês devem perseverar em fazer com que o nome e o Evangelho de Jesus sejam conhecidos. Veja isso como o seu chamado e ofício. Vocês não serão dispersos agora pela perseguição, mas as demandas desse trabalho devem levá-los a diferentes países, empregar suas viagens distantes com propósitos missionários. A providência, vez ou outra, manda que você remova a sua tenda – esteja atento para que onde quer que ela esteja colocada, você carregue consigo o testemunho de Jesus. De tempos em tempos, as necessidades de saúde requerem descanso e mudança de ares, e isto o levará a diferentes lugares de auxílio público – aproveite a oportunidade para encorajar as Igrejas em tais localidades, pela sua presença e compostura, e ainda esforce-se a espalhar o conhecimento de Jesus ao longo daqueles a quem você será direcionado.
A posição que você ocupa na sociedade não é acidental – ela não foi dada a você por um cego, por um fato sem propósito – há a predestinação nela e essa predestinação é sábia – e objetiva um fim misericordioso. Vocês são colocados onde estão a fim de que sejam sal aos que estão ao seu redor, um sabor doce de Cristo para todos os que conhecem você. Os métodos da Graça Divina ordenaram uma conexão feliz entre você e as pessoas com quem você se associa. Você é um mensageiro de misericórdia para elas, um arauto de boas novas, uma Epístola de Cristo. A escuridão circundante precisa de você e, portanto, está escrito, “na qual resplandeceis como luzeiros no mundo” (Filipenses 2:15).
Você está destinado a advertir e repreender alguns, a rogar e a encorajar outros. Para você, o pranteador que está de luto busca por conforto e o ignorante, por instrução. Não os deixe buscar em vão. Seja o amigo verdadeiro dos homens, observe a condição deles diante de Deus e se esforce para recuperá-los de suas peregrinações. Se José foi enviado ao Egito para que salvasse a casa de seu pai, você, também, é enviado para onde é enviado para o bem daqueles escondidos da família escolhida pelo Senhor. Se Ester foi colocada na corte de um rei pagão para a libertação de sua nação, assim é com você, minha irmã, chamada para ocupar sua presente posição para o bem da Igreja de Cristo. Observem atentamente, irmãos e irmãs, para que vocês não percam o chamado de suas vidas e vivam em vão. Isto seria uma coisa triste, de fato, se vocês que professam pertencer a Cristo, fossem “o borrão da criação, o vazio da criação”, por terem falhado em trabalhar quando foram chamados.
Essas boas pessoas da Igreja primitiva, contudo, com todo o seu zelo, de certa forma tinham uma mente limitada e tinham dificuldades por conta de seus preconceitos nacionais, pois eles pregavam, primeiramente, apenas para judeus, e era muito difícil fazer com que eles vissem que o Evangelho era para toda a raça humana, tanto para Gentios quanto para Judeus. O seu Mestre disse, “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura”, (Marcos 16:15) e ainda assim eles começaram a pregar apenas para os judeus. As palavras não poderiam ter sido mais claras e ainda assim eles perderam o seu significado. Não é de se espantar que alguns em nossos dias ainda não são capazes de pregar de homem a homem, quando vemos o quão lentos os santos primitivos eram para aprender a lição.

Irmãos, se há algum estreitamento sobre nosso espírito, vamos orar ao Senhor para que o leve embora. Nós não seremos, é claro, algemados como esses judeus foram por ostentar a nossa nacionalidade, mas talvez haja classes na sociedade da qual nos diferenciamos e, portanto, pela qual não fazemos nenhum esforço. Nós dizemos “Seria inútil tentar a conversão de tais pessoas. Eu me sinto preparado para falar com outras pessoas e, no entanto, eu fui colocado no meio dessas pessoas. Eu não posso trazer a minha mente para falar sobre coisas espirituais com elas, pois eu me sinto sem esperança de sucesso.” Amados, que vocês sejam libertos dessa cilada e aprendam a semear ao lado de todas as águas.
Os gentios, apesar de terem sido, por um tempo, passados por alto pelos irmãos, conseguiram se tornar a mais esperançosa de todas as classes. Dos campos dos gentios eles colheram frutos como nunca haviam sido colhidos na Judéia. Antioquia, com os seus gregos, se tornou famosa ao longo das Igrejas Cristãs – lá a Igreja de Cristo, pela primeira vez, teve o seu nome em meio a um renascimento da religião quando grandes multidões acreditaram e se curvaram ao Senhor! Deus, desde muito tempo, planejou que a grande maioria dos eleitos da Graça deveria ser ajuntada daqueles muitos gentios dos quais até os próprios Apóstolos pouco se aventuraram a chamar a atenção!
Agora, meus irmãos, sob a luz desse incidente, comecem a trabalhar de onde vocês ainda não fizeram nada – comecem a ter esperança onde até então vocês só tiveram desespero. Liberem suas melhores energias nessa direção na qual vocês se sentiram mais dificultados, pois lhes é reservado, para própria intensa surpresa de vocês, um sucesso que irá amplamente recompensá-los. Vocês não devem se restringir a terras familiares ao arado – invadam a floresta, derrubem as árvores antigas e limpem as grandes propriedades – esse solo virgem vai render a você colheitas centenas de vezes maiores do que você jamais encontrariam em campos em que outros trabalharam antes de vocês. Se sua mineração espiritual se tornou um fracasso, abra veios frescos do metal precioso, pois as veias do tesouro permanecem escondidas no solo intacto.
Se lancem nas profundezas! Joguem suas redes e multidões de peixes irão lotá-las. Parece-me ser o óbvio ensino do texto de que onde quer que sejamos escalados, nós devemos tentar fazer o bem, e nós devemos esperar pelo maior sucesso ao longo das mais negligenciadas porções da sociedade. Aproximando-me do texto, desejo compelir vocês, nesta manhã, com grande seriedade, para a necessidade da conversão dos homens e como é desejável que deveríamos ter muitos convertidosaqui. E eu devo sugerir o que podemos fazer para obter tal resultado. Em tudo isso eu peço para ser assistido pelo Espírito Santo, sem o qual eu exibiria apenas a minha própria fraqueza e amorteceria as energias que eu quero despertar.
Estes serão os nossos tópicos – primeiro, o fim ao qual visamos – que muitos acreditem e se convertam ao Senhor. Em segundo lugar, o poder pelo qual ele pode ser atingido – “A mão do Senhor estava com eles.” Em terceiro lugar, o desejo de nosso objetivoe, em quarto lugar, como nós vamos promover a sua realização.
I. Vamos falar sobre O FIM AO QUAL NÓS VISAMOS. Pode parecer um lugar-comum, mas é, na verdade, um dos maiores projetos sob o Céu. Aquele que o contempla tem um objetivo maior do que o dos filósofos, Reformadores, ou patriotas. Ele objetiva àquilo pelo que o filho de Deus tanto viveu quanto morreu! Nós desejamos que os homens acreditem, o que quer dizer, primeiro, que eles acreditem notestemunho de Jesus Cristo, pois há alguns que não chegaram além disso. Eles rejeitam a Palavra Inspirada e para eles a Encarnação, a Redenção, a Ressurreição, a Glória, a Segunda Vinda, são apenas fábulas antigas.
Vocês, para quem essas verdades são a luz de suas vidas, mal podem perceber o poder da descrença desse tipo, e ainda assim alguns homens vivem e morrem nessa obscuridade. Nós oramos para que sejam melhor ensinados e que a evidência desses grandes fatos seja forçada sobre eles. Ah, existem muitos que professam acreditar nessas coisas, mas a única razão para fazerem isso é porque eles foram ensinados desde sua infância e essa é a atual religião da nação. Eles respeitam a Inspiração da Escritura, mas além disso, são problemas sobre os quais eles não devem se preocupar – eles não ligam de um jeito ou de outro. Eles acham o mais fácil e respeitável plano o de admitir a Verdade do Evangelho e não pensar mais sobre isso. Essa vã crença cortês é mais um insulto à nossa fé santa do que algo do qual se orgulhar.
Mas, queridos amigos, nós precisamos mais do que essa fé da indiferença, a qual é um pouco mais do que descrença desonesta! Nós queremos que os homens acreditem por si próprios porque eles forampessoalmente convencidos e sentiram por si próprios o poder salvador de Cristo Jesus. Nós oramos para que os Crentes nominais tratem as doutrinas da Revelação, não como dogmas, mas como fatos – não como opiniões, mas como Verdades de Deus – como fatos tão certos quanto os eventos da História, como tão verdades quanto os acontecimentos atuais da vida diária. Pois as grandes doutrinas das Verdades eternas são frequentemente tratadas como nulidades veneráveis e não tem nenhum efeito sobre a conduta daqueles que professam recebê-las porque eles não percebem essas verdades como questões de fato, nem vêem seus comportamentos solenes.
É chocante refletir que uma mudança no clima tem mais efeito sobre a vida de alguns homens do que a terrível alternativa entre Céu e Inferno. O olhar de uma mulher os afeta mais do que o olhar de Deus. Nós, portanto, desejamos ver os homens realmente e verdadeiramente acreditando nos fatos do Evangelho de maneira honesta e prática. Nós não podemos, no entanto, nos contentar com isto. Trabalhamos para que aqueles em nossa volta acreditem colocando sua confiança no Senhor Jesus Cristo. Esse é o grande ato salvador – o homem traz a sua alma e a entrega a Cristo para ter segurança – essa confiança em entregar a alma a Jesus o salva. Ele faz o Salvador guardião de seu estado espiritual e deixa a si mesmo e todos os seus eternos interesses nas mãos queridas que foram uma vez pregadas na Cruz. Oh, como desejamos ver o Espírito Santo trazendo os homens a isto, que eles acreditem em Jesus Cristo descansando Nele e confiando Nele!
Por isso nós vivemos, e por isso deveríamos ficar contentes em morrer para que muitos acreditem! O fim ao qual visamos é que os homens creiam em Jesus para que possam juntos mudar suas relações com Deus, pois “muitos creram e se converteram ao Senhor.” O que isso significa? Significa que esses crentes desistiram de seus ídolos e começaram a louvar o único vivo e verdadeiro Deus! Nós desejamos, queridos ouvintes, que a fé no Senhor Jesus possa os guiar a desistir dos objetos de seu amor idólatra – vocês mesmos, seu dinheiro, seus prazeres, o mundo, a carne, o diabo – e há alguns cujo Deus é o seu umbigo e cuja glória é sua ignomínia. Quando um homem crê em Jesus Cristo, ele deixa de lado os seus falsos deuses e glorifica o grande Pai dos Espíritos – ele não torna nenhum objetivo inferior o alvo de sua existência – mas a partir deles vive para a glória de Deus!
Essa é uma transformação gloriosa, uma completa conversão do coração e da alma do homem. Se converter a Deus significa não simplesmente abandonar o falso deus pelo verdadeiro, mas se converter do amor pelo pecado. O pecado está desse lado, mas a Glória de Deus está no lado oposto. Aquele que olha para a ala do pecado, está de costas para Deus – aquele que olha para o lado de Deus, está de costas para o pecado. É uma conversão abençoada quando os homens se convertem da insensatez do pecado para a Glória de Deus. Com lágrimas e súplicas os homens se convertem, confessando os seus erros, lamentando as suas transgressões, abominando os seus desejos malignos, desejando perdão e esperando pela renovação de sua natureza.
Preciosas aos olhos do Senhor são as lágrimas da penitência e os suspiros dos corações contritos. Não podemos nunca nos satisfazer com os resultados do nosso ministério a menos que a fé guie os homens ao arrependimento de coração diante de Deus, e intensa aversão aos seus pecados e abandono verdadeiro deles. Se converter a Deus significa que a partir de agora Deus deve ser solicitado em oração. “Eis que ele ora” é uma das indicações de um verdadeiro convertido. O homem que vive sem oração vive sem Deus, mas o homem que se converteu a Deus é familiarizado com o Trono da Misericórdia. Que conversão é quando os olhos se voltam para cima para buscar o Senhor – com os olhares solenes quando ninguém, a não ser Deus, está perto. Se converter a Deus significa se entregar obedientemente ao Seu domínio, desejar fazer o que Ele manda, pensar o que Ele ensina, e ser o que Ele comanda.
A fé não é nada a menos que traga consigo uma mente disposta e obediente. A rebelião intencional é a filha da descrença – obediência sincera é a filha da crença humilde. “Eles creram, e se converteram ao Senhor.” Nós queremos que os homens, de fato, se convertam para que suas vidas sejam uma caminhada diante de Deus, crescendo mais como Ele, uma maior comunhão com Ele, seguindo para que suas almas se tornem perfeitamente como Ele e habitem para sempre onde Ele estiver. Agora, queridos amigos, quando eu falo assim de acreditar e se converter a Deus, alguns dirão: “bem, mas isso deve ser uma questão muito fácil, apenas crer e se converter.” Sim, meus irmãos e irmãs, isso parece simples, mas é, não menos, que essencial. “Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.” (João 3:18)
Você diz: “por que fazer todo esse tumulto sobre isso?” Porque dessa questão aparentemente pequena depende a presente e eterna condição do pecador! Crer e se converter a Deus é ser libertado do presente domínio do pecado e da futura punição por ele. Estar sem fé e sem Deus é estar sem regozijo aqui e sem esperança mais para adiante. Irmãos e irmãs em Cristo, isso é o que vocês e eu devemos desejar em todas nossas tentativas para influenciar nossos companheiros. Pode ser útil reformá-los, mas é bem melhor que a Graça os regenere! Deus emprega todo o esforço para promover sobriedade, castidade, parcimônia, honestidade e moralidade – mas você e eu somos enviados para algo mais que isso – nosso trabalho vai mais fundo e é mais difícil.
Não é nosso dever lavar os africanos, mas sim tentar mudar a sua pele. Nós não oramos para que o leão seja domado, mas para que ele seja transformado em um cordeiro. Pode ser bom cortar os ramos da árvore do pecado, mas o nosso dever é colocar o machado na raiz das árvores levando os homens a se converterem a Deus. Isso é uma mudança, não apenas da conduta externa, mas do coração! E se nós não vemos esse resultado – se os homens não crerem e não se converterem a Deus – nós trabalhamos em vão e gastamos nossa força para nada e em vão. Se não há crença e conversão no Senhor, devemos ir aos nossos quartos em secredo e nos lamentarmos diante de Deus porque ninguém acreditou em nossa notícia e o braço do Senhor não foi revelado (Isaias 53:1). Aí está o objetivo – mire nele, dizendo: “Isso eu faço.”
Orando ao Espírito Santo e dependendo do Seu poder, continuem com esse único objetivo. Se esforcem, professores da escola dominical – não se satisfaçam em instruir as crianças – trabalhem para que elas se convertam! Se esforcem, pregadores – não acreditem que terminaram o seu trabalho quando ensinaram às pessoas – vocês não devem descansar nunca até que elas acreditem em Jesus Cristo! Persigam esse fim em todos os sermões e escolas dominicais – lancem suas almas por inteiro nesse objetivo único. O seu trabalho não deve ser uma inculcação fria de uma moralidade externa, mas um entusiasmo por umaregeneração interna. Vocês não devem fazer com que os homens acreditem neles mesmos e assim se tornem auto-suficientes, mas guiá-los a acreditar em Jesus e se tornarem novas criaturas Nele. Eis o nosso fim e nosso alvo – estamos enérgicos para isso?
II. Em segundo lugar, vamos considerar O PODER ATRAVÉS DO QUAL ISSO PODE SER ALCANÇADO – “Amão do Senhor estava com eles.” Ninguém acreditará em Jesus, exceto aqueles a quem o braço de Deus se revelou, pois Jesus disse: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer.” Mas, irmãos, em resposta às orações, esse poder foi revelado ao longo de Seu povo e está ainda com eles! O Seu braço não é curto para que Ele não possa salvar, muito menos Ele o retirou de Sua igreja.
Se encorajem enquanto eu sugira a vocês alguns pensamentos. A mão de Deus está sobre muitos de nossos amigos antes de nós falarmos com eles. É tão prazeroso para mim, quando estou vendo inquiridores, observar como Deus prepara os corações de meus ouvintes. Eu estou estudando certo assunto e orando para que Deus o abençoe – e lá encima, numa câmara, a qual eu nunca vi, um de meus ouvintes está sendo preparado para a minha mensagem. Ele é atingido pelo senso do pecado, ou perturbado com pensamentos difíceis, ou dispensado da esperança de coisas melhores – e então ele está sendo preparado para aceitar o Cristo que eu pregarei a ele! Sim, e preparado para aceitar essa particular forma da mensagem do Evangelho que o Espírito Santo me deu quando eu preguei!
Em uma cama estará deitada uma mulher dolorosamente atingida pelas memórias tristes de sua vida pecadora, de modo que quando ela vai à casa de Deus, cada palavra terá poder sobre ela. Doença e dor, vergonha e pobreza, geralmente produzem uma condição mental mais propensa a receber o Evangelho. Um homem bem-sucedido, em certas circunstâncias, foi arruinado nos negócios, ele não tem mais felicidade e, portanto, vem ouvir o Evangelho, esperando conquistar a sua felicidade novamente. Outro tem sentido problemas nas forças do corpo e foi alertado que a vida é frágil – portanto, ele está preparado para ouvir as admoestações que falam sobre a eternidade. Coragem, ministro de Deus! Você não é nada, mas o Deus Todo Poderoso está com você! Quando você levanta a sua mão para construir a casa do Senhor, a Onipotência trabalha com você e torna o seu trabalho um sucesso.
Cada revolução dessas terríveis rodas, tão pesadas que até o profeta Ezequiel disse “Oh, rodas!”, está trabalhando para alcançar o objetivo que está próximo ao seu coração. As estrelas em seus caminhos lutam por você! As pedras dos campos estão em aliança com você! A sabedoria eterna planeja por você, o poder infinito trabalha com você, a paciência abundante persevera com você e o amor poderoso vai dominar por você! “A mão do Senhor estava com eles.” Do que mais precisamos? Semear, irmãos, pois Deus arou! Vão e construam, pois Deus preparou as pedras e preparou a fundação!
Além disso, a mão do Senhor está com o Seu povo para ajudar os professores e os pregadores. Há impulsos estranhos que vêm nos constrangendo de tempos em tempos, os quais nos fazem pensar e dizer o que, de outra maneira, nunca passou pelas nossas mentes – e elas trabalham com poder nas mentes dos homens. Se você vai viver para ganhar almas, esses pensamentos devem ser dados a você no mesmo momento em que você vai falar. Você geralmente vai dizer para o inquiridor o que você não teria planejado dizer, mas Deus, que conhece melhor o coração daquele inquiridor do que você, preveniu você de dizer o que você queria, e o fez dizer algo que, depois, pensou que tivesse sido um erro.
A minha experiência me ensina que nós geralmente somos sábios em nossa ignorância e igualmente tolos em nossa sabedoria. Frequentemente fizemos o melhor quando pensamos que fizemos do jeito ruim. Se confiarmos em Deus e formos de todo o coração para ganhar almas, teremos um poder nos assistindo em nosso discurso, um poder do qual o maior orador do mundo não está revestido. Fale na Casa dos Comuns por uma festa e você terá que procurar ajuda, mas fale na Casa do Senhor e você procurará por ajuda espiritual. O poeta invoca as musas fabulosas, mas para você, servo do Senhor, há verdadeira ajuda de uma Fonte mais alta! Pensem nisso, trabalhadores, e se encorajem!
Ao lado da Providência e da graciosa ajuda pela qual os homens bons falam, há um trabalho distinto do Espírito de Deus sobre os corações dos homens onde o Evangelho é pregado. O Espírito não está apenas na Palavra, mas além e acima disso, em Seus próprios eleitos, Deus trabalha mais efetivamente, e Sua Verdade se torna irresistível. Que nunca esqueçamos onde a nossa grande força está, pois nessa questão devemos nos apoiar apenas no Espírito de Deus. Com que frequência Deus trabalhou no poder da Sua Graça fazendo os homens sentirem a majestade da Palavra? Eles vêm, talvez, para ouvir o pregador, com a mais preguiçosa curiosidade. Eles procuram algo que os entretenha – mas a Verdade de Deus vai em casa para eles e busca os seus corações. Simples como a linguagem é, “como se um anjo falasse, eles ouvem o som solene,” ele os atravessa como um dardo e eles não podem impedir de sentirem, “Certamente Deus estava lá, e Ele falou comigo.”
O Espírito de Deus me faz lembrar dos pecados deles. Eles tentam esquecer, mas às vezes não conseguem. Tristes memórias os roubam e grandes arrependimentos fatigam as suas almas. Homens que tem sido levianos, descuidados e esquecidos, tem de repente um momento em que se acham virando as páginas de seus antigos diários e pensativamente revisando o passado. Tudo isso leva ao arrependimento e à fé! Esse mesmo Espírito faz os homens enxergarem a beleza da santidade. Eles não conseguem evitar admirá-la, mesmo que estejam distantes dela. Eles são encantados com a amabilidade da Pessoa de Jesus e começam a sentir que há algo a respeito Dele que eles desejam imitar. Quando o pregador proclama o caminho da salvação, o mesmo Espírito leva os homens a admirá-lo e a dizer entre si “Tem algo aqui que a sabedoria humana jamais poderia imaginar” – e eles começam a desejar compartilhar disso! Um desejo toma conta de seus corações, como se alguns pássaros estranhos vindos de uma terra desconhecida tivessem voado para dentro de suas almas e os maravilhado com uma maravilhosa canção. Eles não sabem de onde o desejo veio, mas eles se sentem estranhamente compelidos a receber o estranho.
Algumas vezes o Espírito assopra como um furacão nos corações dos homens e eles tem sido abalados por esse poder sem a vontade de resistir. Assim como uma tempestade atravessa o mar e carrega o frágil barco, conheci o Espírito Divino levando embora a paz e a quietude do farisaísmo, agitando as profundezas da angústia interior, fazendo a alma ir para lá e para cá, cambaleando como um bêbado – e impelindo o coração à costa do limite de ferro do desespero, onde a confiança em cada falsa esperança e vanglória foi destruída para sempre. A Glória seja a Deus quando esse é o caso, pois então a alma é levada a agarrar-se em Jesus!
Sim, irmãos, não é o pregador, nem é o que todos os outros pregadores juntos dizem, mas há um poder, tão potente quanto aquele pelo qual os mundos foram feitos. Descrentes às vezes perguntam: “onde está o seu Deus?” Oh, senhores, se vocês sentissem só uma vez o poder do grande Espírito, vocês nunca fariam essa pergunta! “Desde que os pais adormeceram,” eles dizem, “tudo continua como era.” Mas eles são simplesmente ignorantes a respeito disso, de que novas criações são trabalhadas todos os dias. Que há homens e mulheres vivos neste mundo os quais não são nem mentirosos, nem entusiastas que podem declarar que sobre os seus espíritos o poder eterno e a mente de Deus operaram neles e os mudaram. Ele os conquistou e os abraçou como solícitos cativos à sua suprema majestade.
Sim, irmãos, existe uma mão do Senhor e essa mão do Senhor ainda está com o Seu povo. Se ela não estiver, então nós não veríamos nenhuma crença ou conversão a Deus. Mas enquanto ela ainda está trabalhando entre nós, vamos trabalhar, pois tão certamente quanto vivemos, nós veremos grandes números convertidos a Deus e Deus será glorificado.
III. Vamos agora refletir sobre A DESEJABILIDADE DAS CONVERSÕES. Não é novidade para vocês nem para mim ver muitos crerem e se converterem a Deus. Essas mãos, há 22 anos por Deus tem sido estendidas – não tivemos espasmos de renovação, não alternamos entre surtos furiosos e calmarias repentinas. Mas mês por mês, eu acho que devo dizer domingo a domingo, almas tem sido salvas e a Igreja tem crescido excepcionalmente e Deus tem sido glorificado. O que nós aproveitamos, nós desejamos manter – sim, nós teríamos mais! O Senhor nos diz o que Ele disse à Igreja em Filadélfia, “guarda o que tens, para que ninguém tome a tua coroa,” (Apocalipse 3:11) e a nossa coroa é a coroa de ganhar almas, a qual nós devemos guardar, pois nós não podemos perdê-la.
Esta deve ser a nossa coroa, que nós pregamos o Evangelho, tanto ministros quantos membros de igreja, e tem tornado todos nós ganhadores de almas. Nós desejamos isso porque, antes de tudo, desejamos ver a Verdade de Deus, a piedade, a virtude e a santidade expandidas. Quem entre vocês não deseja? Não quer todo homem bom que os outros sejam bons, todo homem honesto que todos os outros sejam honestos? Não deseja todo homem que ama a sua família que todas as outras famílias sejam bem ordenadas? Oh, então, se não houvesse outra razão mais nobre, você provavelmente vai desejar que os homens se convertam, desde que a conversão é a raiz de tudo que é puro, amável e de boa fama!
Você deseja, também, que os seus companheiros sejam felizes, mas não há felicidade maior do que aquela que vem de uma reconciliação com Deus. A paz que você desfruta através do pecado perdoado deve certamente fazer você desejar que outros também possuam o mesmo. Se a religião é, de fato, uma fonte de gozo eterno para o seu ser, você é desumano se não deseja que outros bebam dessa fonte. irmãos e irmãs, assim como vocês fariam olhos brilharem, assim como vocês tornariam semblantes radiantes de deleite, assim como eu sei que vocês espalhariam felicidade por todos os lados – desejem acima de todas as coisas que os seus filhos, seus parentes, seus vizinhos, seus amigos, sejam convertidos a Deus! Assim os espinhos e os abrolhos darão lugar a murtas e rosas e desertos serão transformados em jardins do Senhor.
Vocês também desejam a conversão, eu tenho certeza disso, porque vocês sentem o terrível perigo dos homens não convertidos. Vocês ainda não aderiram à moderna doutrina que esses homens e mulheres em sua volta são apenas cães, gatos e cavalos de duas pernas e vão morrer em fim e deixar de ser. Você acredita na imortalidade dada por Deus das almas humanas – uma herança da qual nenhum homem pode escapar, a mais nobre das doações de todo homem – o maior de todos os presentes, apesar de o pecado poder transformá-lo no mais terrível dos males. Você teria acabado com os motivos para desejar a conversão dos homens se você não acreditasse que existe outro e eterno estado.
Mas, acreditando que o homem vive agora e existe para sempre, você deve, estou certo, estar ansioso de que os homens possam escapar da ira que está por vir. Conhecendo os terrores do Senhor, vocês poderiam persuadir os homens. Julgando que há uma das duas coisas para eles, “Eles irão para o castigo eterno”, ou então, “mas os justos para a vida eterna,” (Mateus 25:46) você nunca poderá descansar até se sentir convencido de que aqueles ao seu redor são participantes da vida eterna. Olhe para qualquer pessoa não convertida e suas simpatias devem se levantar a elas. Se eu visse sinais de febre, ou marcas da consumação no rosto de qualquer um que eu ame, eu deveria ser golpeado com alarme. O que, então, eu devo sentir ao ver a condenação – como eu vejo – na face de todos os descrentes?
Como é que nós não estamos ainda mais angustiados do que somos quando os homens estão perecendo nos seus pecados? Por que, meus irmãos, nós não estamos mais concentrados na conversão dos homens? Vamos deixar que essas perguntas nos humilhem e cause grandes buscas no coração. É uma vergonha para nós que nós tenhamos tão pouco da mente de Cristo, tão pouca compaixão pelas almas dos homens. Além disso, irmãos e irmãs, auto-preservação é uma lei da Natureza e a Igreja não pode nunca preservar a si mesma, exceto pelo aumento do mundo pela conversão. Onde estão os pregadores para a próxima geração? Hoje eles estão entre os mundanos e nós devemos trabalhar para trazê-los a Deus. Onde estão as pedras para fazer o próximo curso nas paredes de nossa Sião? Elas não estão extraídas ainda e nós devemos, pela Graça de Deus, escavá-las.
Nós que agora trabalhamos pela vontade do Senhor vamos em breve seguir os nossos caminhos. Nossos tronos e coroas estão esperando por nós e os anjos estão acenando para nós. Quem irá preencher nossos lugares? Quem vai carregar o estandarte? Quem vai soprar a trombeta? Quem vai empunhar a espada? Nós devemos encontrar novos campeões na fila do inimigo – eles devem ter nascido para Deus – e nós devemos orar para que isso seja cumprido pela nossa instrumentalidade. Busquem conversões, pelo amor de Cristo. Vocês conhecem a agonia e o suor sangrento – eles devem ser gastos em vão? Vocês conhecem a crucificação e o grito de “Por que me desamparaste?” (Mateus 27:46) Isso deveria não ser recompensado? Você tem pensado e confiado nas angústias amargas da morte do seu Redentor – Ele não deve ver o fruto do trabalho de sua alma?
Ele não deve estar satisfeito? Essas ovelhas perdidas são as Suas ovelhas, por quem Ele derramou o Seu precioso sangue! Esses centavos perdidos de dinheiro são o Seu dinheiro e eles carregam a Sua imagem e Sua inscrição – eles não devem ser encontrados? Esses filhos perdidos gastando suas vidas são os Seus irmãos, filhos de Seu Pai – vocês não desejam, pelo amor de Jesus, que eles sejam levados para casa? Queridos amigos, que alegria será para vocês se os homens acreditarem e se converterem ao Senhor por meio de vocês! Eu coloquei este motivo por último e espero que ele não seja o mais forte, mas ele ainda será um dos mais vivificantes. Que alegria será para vocês se vocês virem muitos convertidos!
Alguém perguntou “Se os pagãos não forem evangelizados, o que será deles?” Eu colocarei outra questão de caráter bem mais prático. Se você nãotentar evangelizar os pagãos, o que será de você?Não questione tanto a respeito do destino delesquanto a seu próprio se você não tem nenhum cuidado pela salvação deles! Aquele que nunca deseja a conversão de outro está em perigo iminente de ser condenado, ele mesmo. Eu não acredito na salvação de nenhum homem que esteja amarrado a si próprio! Certamente, ele não será salvo peloegoísmo. Eu não consigo acreditar em nenhum homem que esteja possesso do Espírito de Deus que seja indiferente à condição dos outros – um dosprimeiros frutos do Espírito é o amor. Assim como as flores que, no seu primeiro desabrochar, espalham o seu perfume, devem os salvos, nos seus primeiros dias de Graça, desejar o bem de seus companheiros.
Eu sei que um dos meus primeiros impulsos, quando eu olhei a Cristo pela primeira vez e perdi o fardo do meu pecado, foi contar a todo mundo ao meu redor sobre as bênçãos que eu recebi, pois eu desejava fazer os outros tão felizes quanto eu estava. Eu temo que você que nunca tentou ganhar almas não possui uma característica essencial do cristão. Eu deixo a questão com as suas próprias consciências.
IV. Em quarto lugar, vamos perguntar O QUE NÓS PODEMOS FAZER PARA PROMOVER CONVERSÕES. A conversão é um trabalho de Deus. Ela não pode ser feita sem a Sua mão. Sem Ele nós não podemos fazer nada. Nossas mãos são sujas demais para tal trabalho. O poder dos primeiros discípulos e nosso está apoiado no fato mencionado no texto – “A mão do Senhor estava com eles.” Ainda, existem certas circunstâncias sob as quais essa mão vai trabalhar e há obstáculos que irão contê-la.
Vamos pensar um pouco. Primeiro, se os pecadores devem ser convertidos nós devemos almejar isto distintamente. Como uma regra, um homem faz aquilo que ele tenta fazer e não por mera mímica. A conversão dos pecadores não é uma dessas coisas que o homem está sujeito a cumprir sem ter o desejado. Algumas vezes, na Soberania de Deus, um pregador que não almeja a conversão, ainda assim, pode ser útil, pois Deus age como Ele quer. Mas via de regra, os homens não ganham almas se eles não desejarem o fazer. Pescar homens não pode se resumir a jogar a rede sem se preocupar com que peixes foram capturados e quais não foram.
Poucos negociantes se tornam ricos por acidente – eles geralmente tem que lutar e trabalhar duro por dinheiro – e para ser rico em um tesouro de almas salvas você deve almejar isto e lutar por isto. Eu sou tomado de espanto quando penso em quantos sermões são pregados, quantas escolas dominicais são lecionadas, quantos livros religiosos são escritos dos quais você tem certeza de que a intenção não foi a conversão imediata. Imagina-se que de alguma forma desconhecida essas coisas boas podem acidentalmente contribuir para a salvação dos homens, mas esse não é o seu presente objetivo. Ah, irmão, se você quer que os homens venham a Cristo, você deve pregar Cristo a ele de todo o seu coração – com esse desígnio – que eles imediatamente se aproximem de Cristo e de uma vez por todas entreguem os seus corações a Jesus!
Sim, e você deve orar para que eles o façam através do presente esforço, o qual você está fazendo para o bem deles. Aí está o alvo, e se você continuar atirando no ar por tempo suficiente, uma flecha vai acertá-lo. Mas, homem, se você quer ganhar o prêmio de arqueiro, você deve fixar o seu olho no branco e tomar o seu alvo distintamente e com habilidade! Se um indivíduo deve ganhar almas, ele precisa curvar a sua alma inteira a isso e fazer disso o objetivo de toda sua energia. Depois disso, nós devemos tomar cuidado, se devemos ter almas ganhas, de que nós estamos colocando diante deles as Verdades que Deus costuma abençoar. Posso ler para vocês o verso referente ao meu texto? “e começaram a falar também aos gregos, contando-lhes as boas novas a respeito do Senhor Jesus. A mão do Senhor estava com eles.” (Atos 11:20,21)
Se nós não pregarmos Jesus Cristo, nós não veremos almas salvas. Há certas formas de doutrinas que se condenam trabalhando na sua própria extinção. Você já ouviu de um ministério cuja pregação baseada no Unitarismo, mas que a congregação, cedo ou tarde, começou a diminuir? Apesar de muitos desses pregadores terem sido homens de muita habilidade, eles não tem sido, via de regra, capazes de manter as coisas mortas em seus pés! Você vai em nossas pequenas cidades, e você vai achar uma antiga capela, a qual já foi uma Independente, ou Presbiteriana, ou talvez uma Batista. Mas se você vir acima da porta “Unitários1”, você viu, via de regra, tudo o que há. Não existe igreja nem congregação digna do nome – frequentemente o lugar nunca está aberto e a grama cresce no em frente à porta.
Até quando esses pequenos lugares são usados, você vai geralmente perceber que eles contêm meia dúzia de pessoas que acham que todas elas são intelectuais e cultas. É uma religião do maior valor para as aranhas, pois esses seres são capazes de tecer suas teias nas casas de reunião sem medo. Quem já ouviu, ou ouvirá sobre um Whitefield Unitário ou um Sociniano2 Mal-humorado juntando 20.000 pessoas para ouvir um Evangelho sem Cristo? É um fenômeno que nunca foi visto e nunca o será! Os instintos dos homens os guiam a se afastar de uma crença a qual contêm tão pouco que possa consolar a alma conturbada.
Se nós queremos almas salvas, nós devemos evitar igualmente o sistema intelectual moderno em todas as suas formas. “Oh!”, alguém chora, “você deveria ouvir o grande Sr. Bombástico. É – Oh, eu não posso contar a você o que é, mas é algo muito maravilhoso! É um prazer intelectual.” Só isso. Mas quantas conversões são alcançadas por esse maravilhoso gênio? Quantos corações são quebrantados pela retórica fina? Quantos corações partidos são curados pela filosofia? Até onde eu observei, eu vi que Deus não salva almas através de tratos intelectuais. Certos pontos de vista quanto ao futuro do homem devem igualmente ser mantidos livres disso, se você for o meio da conversão. Diminua as suas ideias sobre a ira de Deus e dos terrores do Inferno – e nessa proporção você vai diminuir os resultados do seu trabalho!
Eu não consigo conceber um Bunyan ou um Baxter, ou qualquer outro grande ganhador de almas, caindo nessas novas noções. Ou se ele fizesse, este seria o fim de seu sucesso. Outras manias e novidades da doutrina devem também ser deixadas sozinhas, pois elas não são para promover o seu objetivo, mas vão certamente desviar a atenção dos homens do ponto vital. Queridos irmãos, se vocês querem uma colheita, cuidem bem de suas sementes. Houve tempos em que os agricultores jogavam todas as batatas pequenas em um lado, separadas das sementes, e então eles tiveram colheitas ruins. Agora eu vejo eles escolherem as melhores e colocá-las perto. “Nós temos que ter boas sementes,” eles dizem. Se eu tivesse que semear os meus campos com trigo eu não tomaria a cauda do milho. Eu não deveria gastar nenhuma despesa sobre a semente, pois seria uma falsa economia não comprar nenhuma a não ser a boa. Vá pregar, ensinar e instruir com a melhor doutrina, aquela da Palavra de Deus, pois, dependendo dela, apesar de o resultado não estar emsuas mãos, também depende muito do que você ensina! Oh, Espírito eterno e abençoado, guia os Teus servos para toda a Verdade!
Depois disso, se você quer ganhar almas para Cristo,sinta um alarme solene sobre elas. Elas não podem sentir se você não o fizer. Acredite no perigo delas, acredite no desespero delas, acredite que apenas Cristo pode salvá-las e falar com elas como você quer. O Espírito Santo vai movê-las por mover você primeiro. Se você pode descansar sem que elas tenham sido salvas, elas vão descansar também. Mas se você está cheio de uma agonia por elas, se você não consegue suportar a ideia de que elas estariam perdidas, você logo verá que elas estão apreensivas também. Eu espero que você chegue a um estado no qual você sonhe com o seu filho, ou com seu ouvinte perecendo por não ter a Cristo – e comece de uma vez a chorar “Oh, Deus, me dê convertidos, ou eu morro!” Então você terá convertidos – não há temor quanto a isso – Deus não manda dores a seus servos, sem causar a eles abundância em filhos espirituais. Haverá novos nascimentos para Deus quando você está agonizando por eles!
Mas, me deixe acrescentar, deve haver muita oração. É um deleite estar numa reunião de Oração na qual os irmãos não deixarão o Senhor ir a não ser que Ele os abençoe, quando um irmão ora, chorando enquanto fala, as lágrimas correndo pelo seu rosto, enquanto ele pede a Deus para que Ele tenha misericórdia dos filhos do homem. Eu estou sempre certo de que os pecadores são ordenados a serem abençoados quando vejo santos assim compelidos a orar a Deus por eles. Em seus quartos, sozinhos, nos altares das suas famílias e nos seus esconderijos de oração, sejam importunados e a mão do Senhor deverá estar, e estará, com vocês. Chorem alto e não economizem, clamem como se fosse pelas suas vidas, e tragam à tona os seus fortes argumentos, pois só prevalecendo com Deus é que você vai prevalecer com os homens.
Depois, deve ser adicionado à oração esforço pessoal direto da parte de todos vocês. Grandes números serão salvos pela minha pregação se o Espírito Santo a abençoar, mas eu espero números maiores se todosvocês se tornarem pregadores, se todo irmão e irmã aqui se tornar uma testemunha de Cristo. Você é preguiçoso? Algum de vocês está começando a dormir? Eu os ordeno, levantem! Pelo amor que vocês carregam por Jesus, e pelo amor que vocês carregam pelos seus companheiros, comecem de uma vez a perseguir a conversão daqueles que os rodeiam. Oh, meus amados, não se tornem mornos! Meu coração me trai nesse pensamento! Se vocês são zelosos, eu vivo – se vocês se tornarem inativos, o meu espírito morre dentro de mim!
Por último, se você quer ver muitos convertidos,espere por eles. “Faça-se-vos conforme a vossa fé.” (Mateus 9:29) Cuide deles. Acredite que Deus abençoará cada sermão e vá caçar, depois do sermão, para saber onde os convertidos estão. Como uma companhia de servidores e seguidores de campo geralmente seguem todo exército – e depois de uma batalha eles sobem para despojar os mortos – se você não pode pregar, eu teria que seguir os guerreiros a se reunir no despojo. Ninguém precisou induzir os vorazes saqueadores a perambular no campo de Gravelotte ou Sedan3, mas agora parece até necessário persuadir vocês a coletar uma presa bem mais nobre.
Subam! Subam, servos do Senhor e dividam a pilhagem com os fortes! Cristo lutou a sua batalha. Suas flechas atravessaram os corações dos inimigos do Rei – a espada de dois gumes atingiu na esquerda e na direita – levantem, filhos de Jacó, para a pilhagem e reúnam os convertidos como a sua pilhagem! Fale com os novos convertidos, anime os corações partidos, conforte os necessitados, e traga ao Seu palácio troféus a seu Senhor! Na verdade, eu digo a vocês, se você não buscar conversões, você não as obterá! E você não pode culpar o Senhor – você não está embaraçado com Ele – mas culpe seu próprio coração!
Deus os abençoe, amados, e que nós tenhamos um maior crescimento nessa Igreja durante o próximo mês do que o que tivemos há anos, para que nosso Deus tenha maior louvor.
PARTE DA ESCRITURA LIDA ANTES DO SERMÃO: Atos 11
Todo direito de tradução protegido por lei internacional de domínio público
Sermão nº 1282—Volume 22 do The Tabernacle Metropolitan Pulpit,
Original em inglês: Conversions Desired
Projeto Spurgeon – Proclamando a Cristo crucificado.

Janeiro de 2012
Unitarismo: movimento religioso que negava a deidade de Cristo: tem origens em ideias contrárias ao Concilio de Nicéia e no arianismo: na Inglaterra, teve influência de movimentos socinianos (ver nota de rodapé seguinte). Theophilus Lidsey, ex-pastor anglicano, fundou a 1º igreja Unitária inglesa em Londres no século 18. Negaram o dogma da Trindade, como afirmando que Jesus Cristo não fosse nada mais que um homem,ainda que vendo nele um profeta enviado por Deus. Os unitários rejeitavam as manifestações espiritualistas ou emocionais de fervor religioso do Grande Avivamento que estava produzindo-se nas igrejas ortodoxas do Puritanismo anglo-saxão
2 Socianismo: Fausto Socini (1539-1604) desenvolveu sua própria obra teológica, marcada pelo antitrinitarianismo e o uso da racionalidade. Para Socini, a religião evocava questões que estavam “além da razão” pelo que os credos deviam concordar com a razão humana.
Gravelotte e Sedan: referência as Batalhas de Gravelotte (travada em 18 de agosto de 1870) e de Sedan (1º de setembro de 1870) travadas entre a Prússia e a França na Guerra Fraco-Prussiana (1870-1871) a batalha de Gravelotte foi a maior batalha da Guerra, e a de Sedan foi a batalha onde a França capitulou, o imperdador Napoleão III foi capturado, e posteriormente Bismarck pode fundar o II Reich Alemão no Castelo de Versalhes.



                                                 LucioFidalgo

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A VIDA QUE VENCE


                                           
                                                             A VIDA QUE VENCE


O autor destes estudos, o Sr. Watchman Nee (Nee To-sheng) de Foochow, verdadeiro escravo de Jesus Cristo, fez com que ficássemos obrigados a ele quando, numa visita à Europa em 1938 e 1939, expôs com tanta lucidez, no seu ministério a muitos grupos de jovens obreiros e outros, os princípios fundamentais da vida e conduta cristãs.
Várias das palestras, que constituem a matéria de que este livro foi compilado, foram já coligidas independen­temente e dadas à publicação, e têm sido meio de bên­ção para muitos. Outras, que cobrem um terreno seme­lhante, porém mais vasto, existem desde há muito sob a forma de manuscrito ou notas. Foi com a convicção de que a mensagem destas palestras merece, atualmente, uma circulação mais vasta, que me encarreguei de editar a matéria disponível, para tornar maior este livro.
Sem ter contato pessoal ou comunicação com o autor, tive eu próprio de tomar a responsabilidade plena do trabalho da edição. Isto envolveu a necessidade de reu­nir matéria proveniente de diversas fontes para formar se­qüência lógica dentro da estrutura de duas séries originais de estudos. Devido à ampla variedade desta matéria, incluindo relatos verbais de palestras faladas em Inglês, notas particulares de leituras da Bíblia, e conversações pessoais e algumas traduções do Chinês, houve por força tomar certas liberdades no que diz respeito ao arranjo literário - não, evidentemente, no que se refere à dou­trina - que tomaram a mão do editor mais evidente do que eu o desejaria. Todavia, o privilégio de um contato pessoal íntimo com o Sr. Nee durante 1938 e o auxílio e as críticas de outros que desfrutaram do seu ministério, ou que trabalharam com ele e o conheceram melhor do que eu combinaram-se, em alguns lugares em que era necessário fazer-se interpretação, para assegurar a fideli­dade ao seu pensamento.
Trabalhar neste livro foi uma experiência de análise e Investigação. Sai agora com a oração para que a sua forte ênfase sobre a grandeza de Cristo e a suficiência do Seu trabalho possa ser usada por Deus, para levar os Seus fi­lhos a uma posição de maior eficiência espiritual, e assim de valor crescente para Ele.
Bangalore, Índia — 1957.
ANGUS KINNEAR.


1

O sangue de Cristo

O que é a vida cristã normal? Fazemos bem em consi­derar esta questão logo de início. O objetivo destes estu­dos é mostrar que essa vida é algo muito diferente da vida do cristão comum. De fato, a análise da Palavra de Deus escrita — do Sermão da Montanha, por exemplo — deve levar-nos a perguntar se tal vida já foi vivida sobre a terra, a não ser, unicamente, pelo próprio Filho de Deus. Mas, nesta edição, encontramos imediatamente a resposta à nossa pergunta.
O apóstolo Paulo nos dá a sua própria definição da vi­da cristã em Gálatas 2.20. É "não mais eu, mas Cristo". E não declara aqui alguma coisa especial ou singular — um alto nível de cristianismo. Creio que aqui apresenta o plano normal de Deus, para o cristão, que pode ser resumido nas seguintes palavras: Vivo não mais eu, mas Cristo vive a Sua vida em mim.
Deus nos revela claramente, na Sua Palavra, que so­mente há uma resposta para cada necessidade humana — Seu Filho, Jesus Cristo. Em toda a Sua ação a nosso res­peito, Deus usa o critério de nos tirar do caminho, pondo Cristo, o Substituto, em nosso lugar. O Filho de Deus morreu em nosso lugar, para obter o nosso perdão; Ele vive em vez de nós, para alcançar o nosso livramento. Podemos falar, pois, de duas substituições — uma Substi­tuição na Cruz, que assegura o nosso perdão, e uma Substituição interior que assegura a nossa vitória.. Ajudar-nos-á grandemente, e evitará muita confusão, conservar constantemente perante nós este fato: Deus responderá a todos os nossos problemas de uma só forma: mostrando-nos mais do Seu Filho.

Nosso problema duplo: os pecados e o pecado

Tomaremos agora, como ponto de partida para o nos­so estudo da vida cristã normal, aquela grande exposição da mesma que encontramos nos primeiros oito capítulos da Epístola aos Romanos e encararemos o assunto de um ponto de vista experimental e prático. Será de grande au­xílio notar, em primeiro lugar, uma divisão natural desta seção de Romanos em duas, e notar certas diferenças evi­dentes no conteúdo das duas partes.
Os primeiros oito capítulos de Romanos constituem em si mesmos, uma unidade completa. Os quatro capítu­los e meio, de 1.1 a 5.11, formam a primeira metade des­ta unidade, e os três capítulos e meio, de 5.12 a 8.39, a segunda metade. Uma leitura cuidadosa revelar-nos-á que o conteúdo das duas metades não é o mesmo. Por exem­plo, no argumento da primeira seção encontramos em proeminência a palavra plural "pecados". Na segunda seção, contudo, esta ênfase é modificada, porque, enquanto a palavra "pecados" ocorre apenas uma vez, a palavra singular "pecado" é usada repetida vezes, e constitui o assunto básico e principal das considerações. Por que assim?
Porque, na primeira seção, considera-se a questão dos pecados que eu tenho cometido diante de Deus, que são muitos e que podem ser enumerados, enquanto que, na segunda, trata-se do pecado como princípio que opera em mim. Sejam quais forem os pecados que eu cometo, é sempre o princípio do pecado que me leva a cometê-los. Preciso de perdão para os meus pecados, mas preciso também de ser libertado do poder do pecado. Os primei­ros tocam a minha consciência, o último a minha vida. Posso receber perdão para todos os meus pecados, mas, por causa do meu pecado, não tenho, mesmo assim, paz interior permanente.
Quando a luz de Deus brilha, pela primeira vez, no meu coração, clamo por perdão, porque compreendo que cometi pecados diante dEle; mas, após ter recebido o perdão dos pecados, faço uma nova descoberta, ou se­ja, a descoberta do pecado, e compreendo que não só cometi pecados diante de Deus, mas também que existe algo de errado dentro de mim. Descubro que tenho a na­tureza do pecador. Existe dentro de mim uma inclinação para pecar, um poder interior que leva ao pecado. Quan­do aquele poder anda solto, eu cometo pecados. Posso procurar e receber o perdão, depois, porém, peco outra vez. E, assim, a vida continua num círculo vicioso de pe­car e ser perdoado e depois pecar outra vez. Aprecio o fato bendito do perdão de Deus, mas eu desejo algo mais do que isso: preciso de livramento. Preciso de perdão pa­ra o que tenho feito, mas preciso também de ser liberta­do daquilo que sou.

O duplo remédio de Deus: o Sangue e a Cruz

Assim, nos primeiros oito capítulos de Romanos, apresentam-se dois aspectos da salvação: em primeiro lugar, o perdão dos nossos pecados e, em segundo lugar, a nossa libertação do pecado. Agora, ao considerar este fato, devemos notar outra distinção.
Na primeira parte de Romanos, 1 a 8, encontramos duas referências ao Sangue do Senhor Jesus, em 3.25 e 5.9. Na segunda, é introduzida uma nova idéia, em 6.6, onde lemos que fomos "crucificados" com Cristo. O argumento da primeira parte centraliza-se em torno da­quele aspecto da obra do Senhor Jesus, que é representa­do pelo "Sangue" derramado para nossa justificação, pe­la "remissão dos pecados". Esta terminologia não é, con­tudo, levada para a segunda seção, cujo argumento gira em tomo do aspecto da Sua obra representado pela "Cruz", o que quer dizer, pela nossa união com Cristo na Sua morte, sepultamento e ressurreição. Esta distin­ção tem muito valor. Veremos que o Sangue soluciona o problema daquilo que nós fizemos, enquanto a Cruz so­luciona o problema daquilo que nós somos. O Sangue purifica os nossos pecados, enquanto que a Cruz atinge a raiz da nossa capacidade de pecar. O último aspecto será alvo das nossas considerações nos capítulos que se seguem.

O problema dos nossos pecados

Comecemos, pois, com o precioso Sangue do Senhor.
O Sangue do Senhor Jesus Cristo é de grande valor para nós, porque trata dos nossos pecados e nos justifica a vista de Deus, conforme se declara nas seguintes passa­gens:

"Todos pecaram” (Romanos 3.23).

"Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira" (Rm 5. 8-9).

"Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, me­diante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tole­rância, deixado impunes os pecados anteriormente come­tidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus." (Rm 3.24-26).

Teremos ocasião, num estágio mais adiantado do nos­so estudo, de olhar mais particularmente para a natureza real da Queda e para o processo da recuperação. Nesta altura, queremos apenas lembrar de que o pecado, quan­do entrou, expressou-se em forma de desobediência a Deus (Rm 5.19). Ora, devemos considerar que, quando isto acontece, o que imediatamente se lhe segue é o sentimento de culpa.
O pecado entra na forma de desobediência, para criar, em primeiro lugar, separação entre Deus e o ho­mem, do que resulta ser este afastado de Deus. Deus já não pode ter comunhão com ele, por agora existir algo que a impede, e que, através de toda a Escritura, é co­nhecido como "pecado". Desta forma, é Deus que, pri­meiramente, diz: "Todos... estão debaixo do pecado" (Rm 3.9). Em segundo lugar, o pecado, que daí em dian­te constitui barreira à comunhão do homem com Deus, comunica-lhe um sentimento de culpa — de afastamento e separação de Deus. Agora, é o próprio homem que, mediante a sua consciência despertada, diz: "Pequei" (Lc 15.18). E ainda não é tudo, porque o pecado oferece também a Satanás uma possibilidade de acusação diante de Deus, enquanto o nosso sentimento de culpa lhe dá ocasião para nos acusar nos nossos corações; assim, pois, em terceiro lugar, é o "acusador dos irmãos" (Ap 12.10), que agora diz: "Tu pecaste".
Portanto, para nos remir, e nos fazer regressar ao pro­pósito de Deus, o Senhor Jesus teve que agir em relação a estas três questões: do pecado, da culpa, e da acusação de Satanás contra nós. Primeiramente, teve que ser resol­vida a questão dos nossos pecados, e isso foi feito pelo precioso Sangue de Cristo. Depois, tem que ser resolvido o assunto da nossa culpa e é somente quando se nos; mos­tra o valor daquele Sangue que a nossa consciência culpa­da encontra descanso. E, finalmente, o ataque do inimi­go tem que ser encarado e as suas acusações respondidas. As Escrituras mostram como o Sangue de Cristo opera eficazmente nestes três aspectos, em relação a Deus, em relação ao homem, e em relação a Satanás.
Temos, portanto, necessidade de nos apropriarmos destes valores do Sangue, se quisermos de fato prosse­guir. É absolutamente essencial. Devemos ter conheci­mento básico do fato da morte do Senhor Jesus, como nosso Substituto, sobre a Cruz, e uma clara compreen­são da eficácia do Seu sangue, em relação aos nossos pe­cados, porque, sem isto, não poderemos dizer que inicia­mos a marcha. Olharemos então estes três aspectos mais de perto.

O Sangue é primariamente para Deus

O Sangue é para expiação e, em primeiro lugar, rela­ciona-se com a nossa posição diante de Deus. Precisamos de perdão dos nossos pecados cometidos para que não caiamos sob julgamento; e eles nos são perdoados, não porque Deus não os leva a sério, mas porque Ele vê o Sangue. O Sangue é, pois, primariamente, não para nós, mas para Deus. Se eu quero entender o valor do Sangue, devo aceitar a avaliação que Deus dele faz e, se eu não conhecer o valor que Deus dá ao Sangue, nunca saberei qual é o seu valor para mim. É só na medida em que me é dado conhecer, pelo Seu Espírito Santo, a estimativa que Deus faz do Sangue, que eu próprio aprendo o seu valor, e vejo quão precioso o Sangue realmente é para mim. Todavia, o seu primeiro aspecto é para Deus. Atra­vés do Velho e do Novo Testamento, a palavra "sangue" é usada em conexão com a idéia da expiação, segundo creio, mais de cem vezes, e sempre, e em toda a Escritura algo que diz respeito a Deus.
No calendário do Velho Testamento há um dia que tem grande significação quanto aos nossos pecados, o Dia da Expiação. Nada explica esta questão dos pecados tão claramente como a descrição daquele dia. Em Levítico 16 lemos que, no Dia da Expiação, o Sangue era toma­do da oferta pelo pecado e trazido ao Lugar Santíssimo e ali espargiu sete vezes diante do Senhor. Devemos com­preender isto muito bem. Naquele dia, a oferta pelo pe­cado era oferecida publicamente no pátio do Tabernácu­lo. Tudo estava ali à vista de todos, e por todos podia ser observado. Mas o Senhor ordenou que nenhum homem entrasse no Tabernáculo, a não ser o sumo sacerdote. Era somente ele que tomava o sangue, e, entrando no Lugar Santíssimo, o espargia ali para fazer a expiação perante o Senhor. Por quê? Porque o sumo sacerdote era um tipo do Senhor Jesus na Sua obra redentora (Hebreus 9.11-12), e, assim, em figura, era o único que fazia este traba­lho. Ninguém, exceto ele, podia mesmo aproximar-se da entrada. Além disso, havia relacionado com a sua entra­da ali, um único ato: a apresentação do sangue a Deus como algo que Ele aceitara algo em que Ele Se satisfaria. Era uma transação entre o sumo sacerdote e Deus, no Santuário, fora da vista dos homens que se beneficiaram dela. O Senhor exigia-o. O Sangue é, pois, em primeiro lugar, para Ele.
Mas, anteriormente, encontramos descrito em Êxodo 12.13, o derramamento do sangue do cordeiro pascal, no Egito, para redenção de Israel. Este é, creio um dos me­lhores tipos, no Velho Testamento, da nossa redenção. O sangue foi posto na verga e nas ombreiras das portas, en­quanto que a carne do cordeiro era comida no interior da casa; e Deus disse: "Vendo Eu sangue passarei por ci­ma de vós". Eis outra ilustração de o sangue não se desti­nar a ser apresentado ao homem, e, sim, a Deus, pois que o sangue era posto nas vergas e nas ombreiras das portas, de modo que os que se encontravam em festa dentro das casas não pudessem vê-lo.

Deus está satisfeito

É a santidade de Deus, a justiça de Deus, que exige que uma vida sem pecado seja dada em favor do homem. Há vida no Sangue, e aquele Sangue tem que ser derra­mado em favor de mim, pelos meus pecados. Deus requer que o Sangue seja apresentado com o fim de satisfazer a Sua própria justiça, e é Ele que diz: "Vendo eu sangue passarei por cima de vós". O Sangue de Cristo satisfaz Deus inteiramente.
Desejo agora dizer uma palavra a respeito disto aos meus irmãos mais novos no Senhor, porque é neste caso que muitas vezes caímos em dificuldade. Em nossa condição de descrentes, podemos não ter sido absolutamente mo­lestados pela nossa consciência, até que a Palavra de Deus começou a nos despertar. A nossa consciência esta­va morta, e aqueles que têm consciência morta certamen­te não têm qualquer préstimo para Deus. Mas, mais tarde, quando nós cremos, a nossa consciência pode se tomar extremamente sensível, e isto pode vir a ser real proble­ma para nós. O sentimento de pecado e de culpa pode se tornar tão grande, tão terrível, que quase nos paralisa porque nos faz perder de vista a verdadeira eficácia do Sangue. Parece-nos que os nossos pecados são tão reais, e algumas vezes algum pecado em particular pode atribular-nos tantas vezes, que chegamos ao ponto de imaginá-los maiores do que o Sangue de Cristo.
Ora, nosso mal reside em estarmos procurando sentir o seu valor e estimar, subjetivamente, o que o Sangue é para nós. Não podemos fazê-lo. O Sangue não opera des­ta forma. Destina-se, primeiramente, a ser visto por Deus. Então, temos que aceitar a avaliação que Deus faz dele. Ao fazê-lo, acharemos a nossa própria estimativa. Se, ao in­vés disto, procuramos avaliá-lo, por meio do que senti­mos, não alcançaremos nada, e permanecemos em trevas. Pelo contrário, é. questão de fé na Palavra de Deus. Temos que crer que o Sangue é precioso para Deus porque Ele assim o diz (I Pe 1.18-19). Se Deus pode aceitar o Sangue, como pagamento pelos nossos pecados e como preço da nossa redenção, então podemos ter certeza de que o dé­bito foi pago. Se Deus está satisfeito com o Sangue, logo, deve ser aceitável o Sangue. A nossa estimativa dele é so­mente de acordo com a Sua avaliação — nem mais nem. menos. Não pode, evidentemente, ser mais, mas não de­ve ser menos. Lembremo-nos de que Ele é santo e justo, e que o Deus santo e justo tem o direito de dizer que o Sangue é aceitável aos Seus olhos, e que O satisfez intei­ramente.

O acesso do crente ao sangue

O Sangue satisfaz a Deus, e deve nos satisfazer da mes­ma forma. Tem, portanto, um segundo valor, em relação ao homem, na purificação da sua consciência. Quando examinamos a Epístola aos Hebreus, vemos que o Sangue faz isto. Devemos ter "os corações purificados da má consciência" (Hebreus 10.22).
Isto é da máxima importância. Note cuidadosamente o que diz a Escritura. O escritor não se limita a dizer que o Sangue do Senhor Jesus purifica os nossos corações, sem nada mais declarar. Erramos se relacionarmos intei­ramente, desta forma, o coração com o Sangue. Revela­remos má compreensão da esfera em que o Sangue ope­ra se orarmos: "Senhor, purifica o meu coração do pe­cado, pelo Teu Sangue". O coração, diz Deus, é "engano­so, mais do que todas as coisas e perverso" (Jeremias 17. 9) e Ele tem que fazer algo mais fundamental do que pu­rificá-lo: tem que nos dar um coração novo.
Não lavamos nem passamos a ferro roupas que vamos jogar fora. Como logo veremos, a "carne" é demasiada­mente má para ser purificada; tem que ser crucificada. A obra de Deus em nós tem que ser algo inteiramente novo. "Dar-vos-ei coração novo, e porei dentro em vós espírito novo" (Ezequiel 36.26).
Não encontramos a declaração de que o Sangue puri­fica os nossos corações. O seu trabalho não é subjetivo assim, mas inteiramente objetivo diante de Deus. É ver­dade que o trabalho purificador do Sangue aparece aqui, em Hebreus 10, com relação ao coração, mas é, na reali­dade, com relação à consciência. "Tendo o coração puri­ficado da má consciência".

Qual então o significado disto?

Significa que havia algo se interpondo entre mim e Deus, e que, como resultado disto, eu tinha má consciência sempre que procurava aproximar-me dEle, que constante­mente me lembrava da barreira que permanecia entre mim e Ele. Mas, agora, pela operação do precioso San­gue, algo foi realizado diante de Deus que removeu aque­la barreira. Deus revelou-me este fato através da Sua Pa­lavra. Quando creio nisto e o aceito, a minha consciência fica imediatamente limpa, o meu sentimento de culpa é removido, e já não tenho má consciência diante de Deus.
Cada um de nós sabe quão precioso é ter consciência sem ofensa nas nossas relações com Deus. Um coração de fé, e uma consciência limpa de toda e qualquer acu­sação, ambos são igualmente essenciais para nós, desde que sejam interdependentes. Logo que verificamos que a nossa consciência está sem descanso, a nossa fé desva­nece e imediatamente achamos que não podemos encarar Deus. Portanto, a fim de prosseguirmos com Deus, temos que conhecer o valor real atual do Sangue. O Sangue nun­ca perderá a sua eficácia como fundamento do nosso acesso a Deus, se realmente dele dependermos. Quando entrarmos no Lugar Santíssimo, em que base, que não seja o Sangue, nos atreveremos a fazê-lo?
Quero, porém, perguntar a mim mesmo: esta real­mente procurando o caminho para a presença de Deus através do Sangue, ou por algum outro meio? O que quero dizer quando afirmo "pelo Sangue?” Quero dizer apenas que reconheço os meus pecados, que confesso que necessito da purificação e da expiação e que venho a Deus confiante na obra consumada do Senhor Jesus. Aproximo-me de Deus exclusivamente através dos Seus merecimentos, e jamais na base do meu comportamento; nunca, por exemplo, na base de ter sido hoje especial­mente amável, ou paciente, ou de ter feito hoje algo especial para o Senhor. É só aproximar dEle. A tentação de muitos de nós, quando procuramos nos aproximar de Deus, é pen­sar que, porque Deus já operou em nós - porque já atuou para nos trazer mais perto de Si, e porque nos ensinou lições mais profundas da Cruz - então, já nos deu novos padrões tais que, sem alcançar os mesmos, não haverá mais consciência tranqüila diante dEle. Nunca, porém, se deve basear a consciência tranqüila naquilo que conseguimos ou alcançamos; somente se deve basear a consciência tranqüila naquilo que conseguimos ou alcançamos; somente se pode basear na obra do Senhor Jesus, no derramamento do Seu Sangue.
Talvez esteja errado; sinto, porém, com muita convic­ção, que há entre nós quem pense desta maneira: "Hoje fui um pouco mais cuidadoso; hoje procedi um pouco melhor; esta manhã, li a Palavra de Deus com mais fer­vor, de modo que hoje posso orar melhor". Ou, então: "Hoje tive algumas pequenas dificuldades com a família; comecei o dia sentindo-me muito melancólico e deprimi­do; não me sinto muito animado agora; parece que algo não está bem; não posso, portanto, me aproximar de Deus".
 Afinal de contas, qual é a base em que você se aproxima de Deus? Aproxima-se dEle na base incerta dos seus sentimentos, o sentimento de que hoje se realizou algo para Deus? Ou baseia-se a sua aproximação de Deus em algo muito mais seguro, ou seja, no Sangue derrama do no fato de que Deus olha para aquele Sangue e Se dá por satisfeito? É lógico que se pudesse conceber que o Sangue sofresse qualquer modificação, a base da sua aproximação de Deus seria menos digna de confian­ça. O Sangue, porém, nunca mudou nem mudará jamais. A sua aproximação de Deus é, portanto, sempre com ou­sadia; e essa ousadia lhe pertence pelo Sangue, e nunca pelas suas aquisições pessoais. Qualquer que seja a medi­da do que se conseguiu alcançar hoje, ontem e no dia ante­rior, logo que se faça um movimento consciente para o Lu­gar Santíssimo, deve-se permanecer no único funda mento seguro — o Sangue derramado. Quer tenha tico um dia bom ou mal, quer tenha pecado conscientemente ou não, a base da sua aproximação é sempre a mesma – o sangue de Cristo. Esse é o fundamento sobre o qual se pode entrar, e não há outro.
Vê-se que, como em muitas outras fases da nossa expe­riência cristã, nosso acesso a Deus tem dois aspectos: um inicial e outro progressivo. O primeiro se nos apresenta em Efésios dois, e o ultimo em Hebreus 10. Inicialmente, a nossa posição perante Deus foi garantida pelo Sangue, porque fomos "aproximados pelo Sangue de Cristo" (Efé­sios 2.13). Mas, daí em diante, a base do nosso contínuo acesso ainda é o Sangue, porque o Apóstolo nos exorta: "Tendo, pois, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus... aproximemo-nos..." (Hb 10.19-22). De inicio chegamos perto pelo Sangue, e, para continuar nesta nova relação, eu venho a Deus a todo momen­to pelo Sangue. Não se trata, portanto, de haver uma ba­se para a minha salvação, e outra para manter minha comunhão. Alguém dirá: "Isso é muito simples; é o ABC do Evangelho". Sim, mas a tragédia, com muitos de nós, é que nos desviamos do ABC. Chegamos a pensar que fazemos tais progressos que podemos dispensar o Sangue, jamais, porém, poderíamos fazê-lo. Não, a minha aproximação de Deus é pelo Sangue, e é desta mesma forma que, a todo momento, eu venho perante Ele. E assim se­rá até o fim; sempre e unicamente pelo Sangue.
Isto não significa, de forma alguma, que devemos vi­ver de modo descuidado — estudaremos daqui a pouco outro aspecto da morte de Cristo em que se considera este assunto. O que importa aqui é nos contentarmos com o Sangue, que é real e suficiente.
Podemos ser fracos, no entanto o olhar para as nossas fraquezas nunca nos tornará fortes. Procurar sentir nossa maldade, e nos arrepender por isso, não nos auxiliará a sermos mais santos. Não há auxílio nisso sem haver da nossa parte confiança em nos aproximarmos de Deus mediante o Sangue, dizendo: "Senhor, não entendo to­talmente qual seja o valor do Sangue, mas sei que a Ti satisfez, e que deve me bastar como motivo único do meu apelo a Ti. Percebo agora que não se trata de eu ter progredido e alcançado algo. Só venho perante Ti na base do precioso Sangue". Então fica realmente limpa a nossa consciência diante de Deus. Nenhuma consciência poderia jamais ficar tranqüila, independentemente do Sangue. É o Sangue que nos dá intrepidez.

"Não mais teriam consciência"de pecados": estas pa­lavras de Hebreus 10.2 têm significado transcendente. Somos purificados de todo o pecado e podemos realmen­te fazer nossas as palavras de Paulo: "Bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado" (Ro­manos 4.8).

Vencendo o Acusador

Em face do que temos dito, podemos agora voltar-nos para encarar o Inimigo, porque há um novo aspecto do Sangue, que diz respeito a Satanás. Atualmente, é o de acusador dos irmãos (Apocalipse 12.10), e nosso Senhor o enfrenta como tal no Seu ministério especial de Sumo Sacerdote, "pelo seu próprio sangue" (Hebreus 9.12). Como é, então, que o Sangue opera contra Satanás? Por este meio: colocando Deus ao lado do homem. A Queda introduziu algo no homem que deu a Satanás livre acesso a ele, de forma que Deus foi compelido a Se reti­rar. Agora, o homem está fora do Jardim — destituído da glória de Deus (Romanos 3.23) — porque interiormente está separado de Deus. Por causa do que o homem fez, existe nele algo que, até que seja removido, impede Deus moralmente de o defender. Mas o Sangue remove aquela j barreira e restitui o homem a Deus e Deus ao homem. O homem agora está certo com Deus, e com Deus ao seu lado pode encarar Satanás sem temor.
Lembre-se do seguinte versículo: "O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado" (I João 1.7). Não é "todo pecado, no seu sentido geral, é cada pecado, um por um. O que significa isto? É algo maravilho­so! Deus está na luz, e na medida em que andamos na luz com Ele, tudo fica exposto e patente a ela, de modo que Deus pode ver tudo — e mesmo nestas condições o Sangue pode nos purificar de todo o pecado. Que purifi­cação! Não se trata de eu não ter profundo conhecimen­to de mim mesmo, ou de Deus não me conhecer perfeita­mente. Não significa que eu procuro esconder alguma coisa, ou que Deus não faz caso disso. Não, significa que Ele está na Luz, e que eu também estou na Luz, e que mesmo ali o Sangue precioso me purifica de todo o pe­cado. O Sangue pode fazê-lo plenamente.
Alguns de nós às vezes somos tão oprimidos pela pró­pria fraqueza que somos tentados a pensar que há peca­dos quase imperdoáveis. Recordemos de novo a palavra: "O sangue de Jesus, seu Filho nos purifica de todo pecado". Pecados grandes, pecados pequenos, pecados que podem ser muito negros e outros que não parecem tão negros assim, pecados que penso possam ser perdoados, e pecados que parecem imperdoáveis, sim, todos os peca­dos, conscientes ou inconscientes, recordados ou esque­cidos, se incluem naquelas palavras: "Todo pecado". "O Sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo pecado", e isto porque o Sangue satisfaz inteiramente a Deus.
Desde que Deus, que vê todos os nossos pecados na luz, pode nos perdoar por causa do Sangue, em que base pode Satanás nos acusar? Talvez Satanás nos acuse pe­rante Deus, no entanto: "Se Deus é por nós, quem será contra nós? " (Romanos 8.31). Deus lhe mostra o Sangue do Seu querido Filho. É a resposta suficiente contra a qual Satanás não tem apelação. "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus que os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu, ou antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós' (Romanos 8.33-34).
Mais uma vez, portanto, vê-se que precisamos reco­nhecer a absoluta suficiência do Sangue precioso. "Quan­do, porém, veio Cristo como sumo sacerdote... pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção" (Hebreus 9.11-12). Foi Redentor uma só vez, e já há quase dois mil anos que está sendo Sumo Sacerdote e Advogado. Ali permanece, na presença de Deus, como "propiciação pelos nossos pe­cados" (I João ?). Notem-se as palavras de Hebreus 9.24: "Muito mais o Sangue de Cristo...". Evidencia a sufi­ciência do Seu ministério. É suficiente para Deus.

Qual é a nossa atitude para com Satanás?

Isto é importante, porque ele não somente nos acusa perante Deus, mas também na nossa própria consciência. "Você pecou, e continua pecando. Você é fraco, e não há mais nada que Deus possa fazer por você". É este o seu au­mento. E a nossa tentação é olhar para dentro, procuran­do, para nos defender, algo em nós mesmos, em nosso sentimento ou comportamento que nos dê algum motivo para crer estar errado Satanás. Outras vezes, a tendência é admitirmos a nossa grande fraqueza e, caindo no outro extremo, nos entregamos à depressão e ao desespero. Assim sendo, a acusação é uma das maiores e mais efica­zes armas de Satanás. Aponta para os nossos pecados e procura acusar-nos perante Deus; se aceitarmos as suas acusações, afundar-nos-emos imediatamente.
Ora, a razão por que aceitamos tão rapidamente as suas acusações é que ainda esperamos ter alguma justiça própria. É falsa a base da nossa esperança. Satanás con­seguiu fazer-nos olhar na direção errada, atingindo assim o seu objetivo de nos deixar incapacitados. Se, porém, tivéssemos aprendido a não confiarmos na carne, não nos espantaríamos quando surgisse o pecado, posto que pecar é a natureza intrínseca da carne. É por falta de reconhe­cermos qual seja nossa verdadeira natureza com sua debi­lidade que nós ainda confiamos em nós mesmos, de mo­do que tropeçamos sob as acusações de Satanás quando ele as levanta contra nós.
Deus tem poder para solucionar o problema dos nossos pecados; nada, porém, pode fazer por um homem que se submete à acusação, porque tal homem já não está confiando no Sangue. O Sangue fala em seu favor, prefere, porém, escutar Satanás. Cristo é o nosso Advo­gado, mas nós, os acusados, nos colocamos do lado do acusador. Ainda não reconhecemos que nada merecemos, senão a morte; que, como logo passaremos a ver, só mere­cemos ser crucificados! Não temos reconhecido que é somente Deus que pode responder ao acusador e que já o fez por meio do Sangue precioso.
Nossa salvação está em olharmos firmemente para o Senhor Jesus, reconhecendo que o Sangue do Cordeiro já solucionou toda a situação criada pelos nossos pecados.
É este o fundamento seguro em que nos firmamos. Nun­ca devemos procurar responder a Satanás, tendo por ba­se a nossa boa conduta, e sim, sempre com o Sangue. Sim, estamos repletos de pecado mas, graças a Deus que o San­gue nos purifica de todo pecado! Deus contempla o San­gue, por meio do qual o Seu Filho enfrenta a acusação, e Satanás perde toda a sua possibilidade de atacar. Semen­te a nossa fé no Sangue precioso, e a nossa recusa de sair­mos daquela posição, podem silenciar as suas acusações e afugentá-lo (Romanos 8.33-34); e assim será sempre até ao fim (Apocalipse 12.11). Que emancipação seria a nos­sa, se víssemos mais do valor, aos olhos de Deus, do precioso Sangue do Seu querido Filho!


2

A cruz de Cristo

Vimos que Romanos 1 a 8 se divide em duas seções, a primeira das quais nos mostra que o Sangue trata daqui­lo que fizemos, enquanto na segunda aprendemos que a Cruz trata daquilo que somos. Precisamos do Sangue pa­ra o perdão, e precisamos da Cruz para a libertação. Já tratamos daquele, e agora consideraremos esta, depois de primeiramente levantar algumas características desta pas­sagem que contribuem para demonstrar a diferença, em conteúdo e assunto, entre as duas metades.

Algumas distinções mais

Mencionam-se dois aspectos da ressurreição nas duas seções, nos capítulos 4 e 6. Em Romanos 4.25, a ressur­reição do Senhor Jesus Cristo é mencionada, em relação à nossa justificação: "Jesus nosso Senhor... foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitou por cau­sa da nossa justificação". Trata-se aqui da nossa posição perante Deus. Em Romanos 6.4, no entanto, fala-se da ressurreição comunicando-nos nova vida a fim de termos um andar santo: "Para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também ande­mos nós em novidade de vida". Apresenta-se aqui a ques­tão do nosso comportamento, da nossa conduta.
Semelhantemente, fala-se de paz em ambas as seções, nos capítulos 5 e 8. Romanos 5 fala da paz com Deus, que é resultado da justificação pela fé no Seu Sangue: "Justificados, pois, mediante a fé, tenhamos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo" (5.1). Isto significa que, agora, perdoados os meus pecados, Deus não será mais motivo de temor e perturbação para mim. Eu, que era inimigo de Deus, fui "reconciliado com Deus mediante a morte do Seu Filho" (5.10). Logo descubro, no entanto, que sou eu quem causarei dificuldades a mim mesmo, havendo algo em meu íntimo que me per­turba, levando-me a pecar. Há paz com Deus, sem, porém, haver paz comigo mesmo. Trava-se guerra civil em meu próprio coração. Esta condição está bem descrita em Ro­manos 7, onde vemos a carne e o espírito em conflito mortal dentro do homem. Em seguida, o argumento con­duz ao capítulo 8, à paz interior do andar no Espírito. "Porque o pendor da carne dá para a morte", por ser "inimizade contra Deus"; o pendor do Espírito, porém, dá "para a vida e paz" (Romanos 8.6-7).
Percebemos, ao prestar mais atenção, que a primeira seção trata de modo geral da questão da justificação (ver por exemplo, Romanos 3.24-26; 4.5,25), enquanto a se­gunda tem, como expoente principal, a questão da santificação (ver Romanos 6.19-22). Conhecendo a preciosa verdade da justificação pela fé, ainda é só metade da his­tória que conhecemos. Foi solucionado o problema da nossa posição diante de Deus. À medida que prossegui­mos, Deus tem algo mais para nos oferecer: a solução do problema da nossa conduta, tema que o desenrolar do pensamento destes capítulos se propõe a salientar. Em cada caso, p segundo passo deriva do primeiro, e se co­nhecemos apenas o primeiro, então ainda seguimos uma vida cristã subnormal. Como podemos então viver uma vida cristã normal? Como entramos nela? Bem, como é evidente, em primeiro lugar devemos receber o perdão dos pecados, devemos ser justificados, devemos ter paz com Deus. Estes são os fundamentos verdadeiramente estabelecidos mediante nosso primeiro ato de fé em Cristo, sendo portanto evidente que devemos avançar para algo mais.
Veremos, pois, que o Sangue trata objetivamente com os nossos pecados. O Senhor Jesus levou-os, por nós, como nosso Substituto, sobre a Cruz, e obteve, para nós, desse modo, o perdão, a justificação e a reconciliação. Devemos, porém, dar agora um passo a mais no plano de Deus para compreender como Ele trata corr. o princípio do pecado em nós. O Sangue pode lavar e tirar os meus pecados, mas não pode remover o meu "velho-homem". É necessária a Cruz para me crucificar. O Sangue trata dos pecados, mas a Cruz trata do pecador? Dificilmente se encontra a palavra "pecador" nos pri­meiros quatro capítulos de Romanos. E isto porque ali não se salienta necessariamente o próprio pecador, falando-se mais dos pecados que ele comete. A palavra "peca­dor" aparece com destaque só no capítulo 5, e é impor­tante notar-se como é que o pecador é apresentado neste trecho. É considerado pecador porque nasceu pecador, e não por ter cometido pecados. Esta distinção é importan­te. É verdade que muitos obreiros do Evangelho, procu­rando demonstrar a alguém que é pecador, emprega o versículo Rm 3.23, onde se afirma que "todos pecaram", emprego este que não é rigorosamente justificado pelas Escrituras. Corre-se o perigo de cair em contradição, porque Romanos não ensina que somos pecadores por cometermos pecados, e sim, pecamos por sermos pecado­res. É mais por constituição do que por ação que somos pecadores. Como Rm 5.19 o expressa: "Pela desobediên­cia de um só homem, muitos se tornaram pecadores". Como é que nos tornamos pecadores? Pela desobe­diência de Adão. Não nos tornamos pecadores por aqui­lo que fizemos, e sim, devido àquilo que fez Adão. O capítulo 3 chama nossa atenção àquilo que fizemos — "todos pecaram" — não é, porém, por isso que viemos a ser pecadores.
Perguntei, certa vez, a uma classe de crianças: "O que é um pecador? " e a sua resposta foi imediata: "Um que peca". Sim, aquele que peca é pecador, mas seu ato ape­nas comprova que já é pecador. Mesmo aquele que não comete pecados, se pertence à raça de Adão, também é pecador e necessita, igualmente, da redenção. Há pecado­res maus e pecadores bons, pecadores morais e pecado­res corruptos, mas todos são igualmente pecadores. Pen­samos, às vezes, que tudo nos iria bem se não fizéssemos determinadas coisas; o problema, no entanto, é muito mais profundo do que aquilo que fazemos: está naquilo que somos. O que se conta é o nascimento: sou pecador porque nasci de Adão. Não é questão do meu comportamento ou da minha conduta, e, sim, da minha hereditariedade, do meu parentesco. Não sou pecador porque pe­co, mas peco porque descendo de linhagem má. Peco por ser pecador.
Tendemos a pensar que o que fizemos pode ser muito mau, e que nós mesmos não somos tão maus assim. O que Deus deseja realmente nos mostrar é que nós é que somos fundamentalmente errados. A raiz do problema é o pecador: é com ele que se deve tratar. Os nossos pecados são solucionados pelo Sangue, mas nós próprios somos trata­dos pela Cruz. O Sangue nos perdoa pelo que fizemos; a Cruz nos liberta daquilo que somos.

A condição do homem por natureza

Chegamos pois a Romanos 5.12-21. Nesta grande pas­sagem, a graça se contrasta com o pecado, e a obediência de Cristo com a desobediência de Adão. A passagem ini­cia a segunda seção de Romanos (5.12 a 8.39), com que nos ocuparemos agora de maneira especial, tirando dela a conclusão que se acha no versículo 19, já citado: "Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também por meio da obe­diência de um só muitos se tornarão justos". O Espírito de Deus procura aqui nos mostrar, em primeiro lugar, o que somos, e depois como chegamos a ser o que somos. No começo da nossa vida cristã, ficamos preocupados com o que fazemos, e não com o que somos; sentimo-nos mais tristes pelo que temos feito, do que pelo que somos. Pensamos que, se pudéssemos retificar certas coi­sas, seríamos bons cristãos, e então, procuramos modifi­car as nossas ações. Os resultados, porém, não são o que esperávamos. Descobrimos, com grande espanto, que se trata de algo mais do que apenas certas dificuldades ex­ternas — que realmente há no íntimo um problema mais sério. Procuramos agradar ao Senhor, descobrimos, po­rém, que há algo dentro de nós que não deseja agradar-Lhe. Procuramos ser humildes, mas há algo em nosso próprio-eu que se recusa a ser humilde. Procuramos de­monstrar afeto, mas não sentimos ternura no íntimo. Sorrimos e procuramos parecer muito amáveis, mas no íntimo sentimos absoluta falta de amabilidade. Quanto mais procuramos corrigir as coisas na parte exterior, tanto melhor entendemos quão profundamente se arrai­gou o problema na parte interior. Então, chegamo-nos ao Senhor, dizendo: "Senhor, agora compreendo! Não é só o que tenho feito que está errado! Eu estou errado".
A conclusão de Romanos 5.19 começa a se tornar clara para nós. Somos pecadores. Somos membros de uma raça que é, constitucionalmente, diferente do que Deus intencionou que fosse. Por causa da queda, houve fundamental transformação no caráter de Adão, em vir­tude do que se tornou pecador, constitucionalmente incapaz de agradar a Deus e a semelhança familiar que todos nós temos com ele não é meramente superficial — expressa-se também no nosso caráter interior. Como aconteceu isto? "Pela desobediência de um", diz Paulo.
A nossa vida vem de Adão. Onde estaria você agora, se o seu bisavô tivesse morrido com três anos de idade? Teria morrido nele! A sua experiência está unida à dele. A experiência de cada um de nós está unida à de Adão da mesmíssima forma. Potencialmente, todos nós estáva­mos no Éden quando Adão se rendeu às palavras da ser­pente. Todos estamos envolvidos no pecado de Adão e, sendo nascidos "em Adão", recebemos dele tudo aquilo em que ele se tornou, como resultado do seu pecado — quer dizer, a natureza de Adão, que é a natureza do pe­cador. Derivamos dele a nossa existência, e, porque sua vida se tornou pecaminosa, e pecaminosa a sua natureza, a natureza que dele derivamos também é pecaminosa. De modo que o problema está na nossa hereditariedade e não no nosso procedimento. A menos que possamos mo­dificar o nosso parentesco, não há livramento para nós.
Mas é precisamente neste ponto que encontraremos a solução do nosso problema, porque foi exatamente assim que Deus encarou a situação.

Como em Adão, assim em Cristo

Em Romanos 5.12-21, não somente se nos diz algo a respeito de Adão, mas também em relação ao Senhor Je­sus. "Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também por meio da obediência de um só muitos se tornaram justos" (19). Em Adão recebemos tudo o que é de Adão; em Cristo re­cebemos tudo o que é de Cristo.
As expressões "em Adão" e "em Cristo" são muito pouco compreendidas pelos cristãos, e desejo salientar, por meio de uma ilustração que se acha na Epístola aos Hebreus, o significado racial e hereditário da expressão "em Cristo". Na primeira parte da carta, o escritor pro­cura demonstrar ser Melquisedeque maior do que Levi. A finalidade desta demonstração é provar que o sacerdó­cio de Cristo é maior do que o de Arão, que era da tribo de Levi. Já que o sacrifício de Cristo é "segundo a ordem de Melquisedeque" (Hebreus 7.14-17) e o de Arão, segun­do a ordem de Levi, o argumento gira em tomo de provar que Melquisedeque é maior do que Levi.
Hebreus 7 diz que Abraão, voltando da batalha dos reis (Gênesis 14), ofereceu a Melquisedeque o dízimo dos despojos e recebeu da parte dele uma bênção, reve­lando ser ele de menor categoria do que Melquisedeque, porque é o menor que oferece ao maior (Hb 7.7). Outrossim, o fato de Abraão ter oferecido o dízimo a Melquisedeque implica que Isaque, "em Abraão", tam­bém o ofereceu, e o mesmo se aplica a Jacó, e também a Levi. De modo que Levi é de menor categoria do que Melquisedeque, e o sacerdócio dele inferior ao do Senhor Jesus. Nem sequer se pensava em Levi na época da bata­lha dos reis. Contudo, fez sua oferta na pessoa do seu pai, antes de ter sido gerado por ele (Hb 7.9,10).
Ora, é justamente isto que significa a expressão "em Cristo". Abraão, como a cabeça da família da fé, incluiu, em si mesmo, toda a família. Quando ele fez a sue oferta a Melquisedeque, toda a sua família participou daquele ato. Não fizeram ofertas separadamente, como indivíduos, mas estavam nele, porque toda a sua semente estava incluída nele.
Apresenta-se-nos assim uma nova possibilidade. Em Adão, tudo se perdeu. Pela desobediência de um homem, fomos todos constituídos pecadores. O pecado entrou por ele, e, pelo pecado, entrou a morte, e desde aquele dia o pecado impera em toda a raça, produzindo a morte. Agora, porém, um raio de luz incide sobre a cena. Pela obediência de Outro, podemos ser constituídos justos. Onde o pecado abundou, superabundou a graça, e, como o pecado reinou na morte, do mesmo modo a graça pode reinar por meio da justiça para a vida eterna por Jesus Cristo, nosso Senhor (Romanos 5.19-21). O nosso deses­pero está em Adão; a nossa esperança está em Cristo.

O processo divino da libertação

Deus certamente deseja que estas considerações nos levem à libertação prática do pecado. Paulo deixa isto bem claro ao iniciar o capítulo 6 desta carta com a per­gunta: "Permaneceremos no pecado? " Todo o seu ser se revolta perante a simples sugestão. "De modo nenhum", exclama. Como podia um Deus santo ter satisfação em possuir filhos não santos, presos com os grilhões do pe­cado? E, por isso, "como viveremos ainda no pecado? " (Rm 6.1,2). Deus ofereceu, portanto, provisão certa e adequada para que fossemos libertados do domínio do pecado.
Mas aqui está o nosso problema. Nascemos pecadores; como podemos extirpar a nossa hereditariedade pecami­nosa? Desde que nascemos em Adão, como podemos sair dele, livrando-nos dele? Quero afirmar de imediato que o Sangue não nos pode tirar para fora de Adão. Há somente um caminho. Desde que entramos nele pelo nascimento, devemos sair dele pela morte. Para nos des­pojarmos da nossa pecaminosidade, temos que nos des­pojar da nossa vida. A escravidão ao pecado veio pelo nascimento; a libertação do pecado vem pela morte - e foi exatamente este o caminho de escape que Deus ofereceu. A morte é o segredo da emancipação. Estamos mor­tos para o pecado (Rm 6.2).
Como, afinal, podemos nós morrer? Alguns de nós procuramos, mediante grandes esforços, libertar-nos des­ta vida pecaminosa, mas a achamos muito tenaz. O caminho de saída não é nos matarmos, e sim, reconhecer que Deus em Cristo cuidou da nossa situação. É esta a idéia contida na seguinte declaração do apóstolo: "todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batiza­dos na sua morte" (Rm 6.3).
Se, porém, Deus solucionou nosso caso "em Cristo Je­sus", logo temos que estar nEle, para que isto se torne realidade eficaz, e assim surge problema igualmente gran­de. Como podemos "entrar" em Cristo? É neste sentido que Deus vem de novo em nosso auxílio. Não temos mes­mo meio algum de entrar nEle, mas o que importa é que não precisamos tentar entrar, porque já estamos nEle. Deus fez por nós o que não poderíamos fazer por nós mesmos. Ele nos colocou em Cristo. Quero recordar I Co 1.30: "Vós sois dele (isto é, de Deus), em Cristo Jesus". Graças a Deus! Não nos incumbe sequer de divisar um caminho de acesso ou elaborar um plano. Deus fez os planos necessários. Não só planejou como também exe­cutou o plano. "Vós sois dele, em Cristo Jesus". Estamos nEle; portanto, não precisamos procurar entrar. É um ato divino, e está consumado.
Se isto é verdade, seguem-se certos resultados. Na ilus­tração do capítulo 7 de Hebreus vimos que "em Abraão" todo Israel — e, portanto, Levi, que ainda não nascera — ofereceu o dízimo a Melquisedeque. Não fizeram esta oferta separada e individualmente, mas estavam em Abraão quando este fez a oferta, e, ao fazê-la, incluiu, nesse ato, toda a sua semente. Isto é, pois, uma verdadei­ra figura de nós próprios "em Cristo". Quando o Senhor Jesus estava na Cruz, todos nós morremos — não indivi­dualmente, porque ainda nem tínhamos nascido — mas, estando nEle, morremos nEle. "Um morreu por todos, logo todos morreram" (II Co 5.14). Quando Ele foi cru­cificado, todos nós fomos crucificados.
"Vós sois dele, em Cristo Jesus". O próprio Deus nos colocou em Cristo e, tratando com Cristo, Deus tratou com toda a raça. O nosso destino está ligado ao Seu. Pelas experiências por que Ele passou, nós igualmente passamos, porque estar "em Cristo" significa ter sido identificado com Ele, tanto na Sua morte como na Sua ressurreição. Ele foi crucificado; o que, então, sucedeu conosco? Devemos pedir a Deus que nos crucifique? Nunca! Quando Cristo foi crucificado, nós fomos cruci­ficados; sendo a Sua crucificação passada, a nossa não pode situar-se no futuro. Desafio qualquer pessoa a en­contrar um texto no Novo Testamento que nos diga ser futura a nossa crucificação. Todas as referências a ela se encontram no tempo aoristo do Grego, tempo que signi­fica "feito de uma vez para sempre", "eternamente pas­sado" (ver Rm 6.6, Gl 2.20; 5.24). E como um homem não poderia se suicidar nunca pela crucificação, por ser fisicamente impossível, assim também, em termos espi­rituais, Deus não requer que nos crucifiquemos a nós próprios. Fomos crucificados quando Ele foi crucificado, pois Deus nos incluiu nEle na Cruz. A nossa morte, em Cristo, não é meramente uma posição de doutrina, é um fato eterno.

A Morte e a Ressurreição dEle são representativas e inclusivas

Quando o Senhor Jesus morreu na Cruz, derramou o Seu Sangue, dando assim a Sua vida, isenta de pecado, para expiar os nossos pecados e assim satisfez a justiça e a santidade de Deus. Tal ato constitui prerrogativa exclu­siva do Filho de Deus. Nenhum homem poderia partici­par dele. A Escritura nunca diz que nós derramamos o nosso sangue juntamente com Cristo. Na Sua obra expia­tória, perante Deus, Ele agiu sozinho. Ninguém poderia participar dele com Ele. O Senhor, no entanto, não mor­reu apenas para derramar o Seu sangue: morreu para que nós pudéssemos morrer. Morreu como nosso Represen­tante. Na Sua morte Ele incluiu a você e a mim.
Freqüentemente usamos os termos "substituição" e "identificação" para descrever estes dois aspectos da mor­te de Cristo. A palavra "identificação" muitas vezes é boa; pode, porém, sugerir que a experiência começa do nosso lado: que sou eu que procuro identificar-me com o Senhor. Concordo que a palavra é verdadeira, mas deve ser empregada mais tarde. É melhor começar com a ver­dade de que o Senhor me incluiu na Sua morte. É a morte "inclusiva" do Senhor que me habilita a me identificar com Ele,ao invés de ser eu quem me identifico com Ele a fim de ser incluído. E aquilo que Deus fez, incluindo-me em Cristo, que importa. É por isso que as duas pala­vras "em Cristo" me são sempre tão queridas ao coração.
A morte do Senhor Jesus é inclusiva, e Sua ressurrei­ção igualmente. Examinando o primeiro capítulo de I Coríntios, estabelecemos que estamos "em Cristo", e ago­ra, mais pelo fim da Carta, veremos algo mais sobre o significado disto. Em I Co 15.45-47, atribuem-se ao Se­nhor Jesus dois títulos notáveis. É chamado "o último Adão" e, igualmente, "o segundo Homem". A Escritura não se Lhe refere como o segundo Adão e sim, como o "último Adão", nem se Lhe refere como o último Ho­mem, e sim, como "o segundo Homem". Note-se esta diferença, que encerra uma verdade de grande valor.
Como o último Adão, Cristo é a soma total da huma­nidade; como o segundo Homem, Ele é a Cabeça de uma nova raça. De modo que temos aqui duas uniões, referin­do-se uma à Sua morte e outra à Sua ressurreição. Em primeiro lugar, a Sua união com a raça, como "o último Adão", começou, historicamente, em Belém, e terminou na Cruz e no sepulcro. E ali reuniu em Si mesmo tudo o que era de Adão, levando-o ao julgamento e à morte. Em segundo lugar, a nossa união com Ele, como "o segundo Homem", começa com a ressurreição e termina na eter­nidade, ou seja, nunca, pois, tendo acabado por meio da Sua morte com o primeiro homem em quem se frustrara o propósito de Deus, ressuscitou como o Cabeça de uma nova raça de homens, em que será plenamente realizado aquele propósito.
Quando, portanto, o Senhor Jesus foi crucificado, foi no Seu caráter de último Adão, reunindo em Si e anulan­do tudo o que era do primeiro Adão. Como o último Adão, pôs termo à velha raça - como o segundo Homem, inicia a nova raça. É na ressurreição que Se apresenta como o segundo Homem, e nesta posição nós também estamos incluídos. "Porque se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição" (Rm 6.5). Morremos nEle, como o último Adão; vivemos nEle, como o segun­do Homem. A Cruz é, pois, o poder de Deus que nos transfere de Adão para Cristo.


3

A vereda do progresso:

sabendo

A nossa velha história termina com a Cruz; a nossa nova história começa com a Ressurreição. "E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura: as cousas antigas já passaram; eis que se fizeram novas" (II Co 5.17). A Cruz põe termo à primeira criação, e por meio desta morte surge a nova criação em Cristo, o segundo Homem. Se estamos "em Adão", tudo quanto em Adão está, ne­cessariamente recai sobre nós. Torna-se involuntariamen­te nosso, pois nada precisamos fazer para disto participar­mos. Sem esforço, sem perdermos a calma, sem cometer­mos mais alguns pecados, vem sobre nós independente­mente de nós mesmos. Da mesma forma, se estamos "em Cristo", tudo o que há em Cristo nos é atribuído pela livre graça, sem esforço nosso, e, simplesmente, pela fé.
Embora seja a pura verdade dizer que em Cristo temos tudo quanto precisamos, pela livre graça, talvez isto não nos pareça muito prático. Como se pode tornar realidade em nossa experiência?
Descobrimos através do estudo dos capítulos 6, 7 e 8 de Romanos que são quatro as condições para se viver uma vida cristã normal:
a) Sabendo;
b) Considerando-nos;
c) Oferecendo-nos a Deus;
d) Andando no Espírito.
Estas quatro condições se nos apresentam nesta mesma ordem. Se quisermos viver aquela vida, teremos que dar todos estes quatro passos. Não um, nem dois, nem três, mas os quatro. À medida que estudarmos cada um © deles, confiaremos que o Senhor, pelo Seu Espírito Santo, iluminará o nosso entendimento e buscaremos o Seu o auxílio, agora, para dar o primeiro grande passo.

A nossa morte com Cristo, um fato histórico

A passagem do nosso estudo agora é Rm 6.1-11. Aqui se vê que a morte do Senhor Jesus é representativa e inclusiva. Na Sua morte, todos nós morremos. Nenhum de nós pode progredir espiritualmente sem perceber isto. Assim como Cristo levou os nossos pecados sobre a Cruz, tampouco podemos ter a santificação sem termos visto que nos levou a nós próprios na Cruz. Não somente foram colocados sobre Ele os nossos pecados, mas tam­bém foram incluídas nEle as nossas pessoas.
Como se recebe o perdão? Compreendemos que o Senhor Jesus morreu como nosso Substituto, e que levou sobre Ele os nossos pecados, e que o Seu sangue foi der­ramado para nos purificar. Quando percebemos que to­dos os nossos pecados foram levados sobre a Cruz, o que fizemos? Dissemos, porventura: "Senhor Jesus, por fa­vor, vem morrer pelos meus pecados"? Não, de forma alguma; apenas demos graças ao Senhor. Não Lhe supli­camos que viesse morrer por nós, porque compreendemos que Ele já o tinha feito.
Esta verdade que diz respeito ao nosso perdão tam­bém diz respeito à nossa libertação. A obra já foi feita. Não há necessidade de orar, e, sim, apenas de dar louvo­res. Deus nos incluiu a todos em Cristo, de modo que quando Cristo foi crucificado, nós também o fomos. Não há, portanto, necessidade de orar: "Sou uma pessoa muito má; Senhor, crucifica-me, por favor". Apenas pre­cisamos louvar ao Senhor por termos morrido quando Cristo morreu. Morremos nEle: louvemo-Lo por isso e vivamos à luz desta realidade. "Então creram nas Suas palavras e Lhe cantaram louvores" (Salmos 106.12).
Você crê na morte de Cristo? É claro que sim. Então, a mesma Escritura que diz que Ele morreu por nós diz também que nós morremos com Ele. Prestemos atenção a este fato: "Cristo morreu por nós" (Rm 5.8). Esta é a primeira declaração que se nos apresenta com toda a cla­reza, a segunda, porém, não é menos clara: "Foi crucifi­cado com ele o nosso velho homem" (Rm 6.6). "Morre­mos com Cristo" (Rm 6.8).
Quando somos nós crucificados com Ele? Qual é a data da crucificação do nosso homem velho? É amanhã? Foi ontem? Ou hoje? Talvez nos facilite considerar de outra forma a afirmação de Paulo, dizendo: "Cristo foi crucificado com (isto é, ao mesmo tempo que) o nosso homem velho". Foi Cristo crucificado? Então como pode ser diferente o meu caso? Se Ele foi crucificado há quase dois mil anos, e eu com Ele, pode se dizer que a minha crucificação ocorrerá amanhã? Pode a Sua ser passada e a minha, presente ou futura? Graças a Deus, porque quando Ele morreu na Cruz, eu morri com Ele. Não morreu apenas em meu lugar, e, sim, levou-me com Ele à Cruz, de forma que, quando Ele morreu, eu morri com Ele. E se eu creio na morte do Senhor Jesus, posso também crer na minha própria morte, tão seguramente como creio na dEle.
Por que acredita que o Senhor Jesus morreu? Qual é o fundamento da sua fé? É porque sente que Ele morreu? Não, você nunca o sentiu. Quando o Senhor foi crucifi­cado, dois ladrões foram crucificados ao mesmo tempo. Não duvida de que eles foram crucificados com Ele, por­que a Escritura o afirma de modo absolutamente claro. Assim também, crê na morte do Senhor, porque a Pala­vra de Deus a declara.
Crendo na morte do Senhor Jesus, e na morte dos la­drões com Ele, o que crê a respeito da sua própria mor­te? A sua crucificação é mais íntima do que a destes. Foram crucificados ao mesmo tempo que o Senhor, mas em cruzes diferentes, enquanto você foi crucificado na mesma Cruz com Ele, porque estava nEle quando Ele morreu. Como pode saber disto? É porque Deus o disse.
Não depende daquilo que você sente. Cristo morreu, quer você sinta isso, quer não sinta. Nós também morre­mos, independentemente do que sentimos quanto a isso; trata-se de fatos divinos: que Cristo morreu, é um fato, que os dois ladrões morreram, é outro, e a nossa morte é igualmente um fato. Posso afirmar: "Você já morreu". Já está posto de parte, eliminado! O "Eu" que você aborrece ficou na Cruz, em Cristo. E "quem morreu, s justificado está do pecado" (Rm 6.7). E este o Evangelho para os cristãos!
A nossa crucificação jamais se tornará eficaz através da nossa vontade, do nosso esforço, e sim, unicamente por aceitarmos o que o Senhor Jesus Cristo fez na Cruz. « Os nossos olhos devem estar abertos à obra consumada» no Calvário. Talvez você tenha procurado, antes de rece­ber a salvação, salvar-se a si mesmo, lendo a Bíblia, orando, freqüentando a Igreja, dando ofertas. Depois, um dia, se lhe abriram os olhos e você percebeu que a plena salvação já lhe fora provida na Cruz. Você simples­mente a aceitou, agradecendo a Deus, e então seu cora­ção foi permeado pela paz e alegria. Ora, a salvação foi dada na mesma base que a santificação: recebemos a li­bertação do pecado do mesmo modo que recebemos o perdão dos pecados.
O modo de Deus operar a libertação é inteiramente diferente dos processos a que o homem recorre. O homem se esforça por suprimir o pecado, procurando vencê-lo: o processo divino consiste em remover o pecador. Muitos cristãos se lamentam das suas fraquezas, pensando que, se fossem mais fortes, tudo lhes iria bem. A idéia de que seja a nossa fraqueza que nos causa os malogros na tenta­tiva de viver uma vida santa, e de que se exige da nossa parte mais esforço, conduz naturalmente a este conceito falso do caminho da libertação. Se é o poder do pecado e nossa incapacidade de vencê-lo que nos preocupa, concluímos que o que nos falta é mais poder. "Se fosse mais forte", dizemos, "poderia vencer as explosões violentas do meu mau gênio", e assim, pedimos que o Senhor nos fortaleça para podermos nos dominar a nós mesmos.
Tal conceito, porém, está completamente errado, e não é o cristianismo. O meio divino de nos libertar do pecado não consiste em nos fazer cada vez mais fortes, «mas antes em nos tornar cada vez mais fracos. Certamen­te se pode dizer que esta é uma forma de vitória bastante estranha, mas é essa a maneira de Deus agir em nós. Deus nos livra do domínio do pecado, não por meio de forta­lecer o nosso velho homem, e sim, crucificando-o; não o por ajudá-lo a fazer coisa alguma, e sim, por removê-lo do campo de ação. Talvez você já tenha procurado em vão, durante muitos anos, exercer domínio sobre si pró­prio, e talvez seja essa sua experiência até agora. Uma vez, porém, que você percebe a verdade e reconhece que real­mente não possui em si mesmo poder algum para fazer seja o que for, passa a saber que quando Deus colocou você de lado, tudo foi realizado, pondo termo ao esfor­ço humano.

O primeiro passo: "Sabendo isto..."

A vida cristã normal tem que começar com um "saber" muito definido, que não é apenas saber algo a respeito da verdade, nem compreender alguma doutrina impor­tante. Não é, de forma alguma, um conhecimento inte­lectual, mas consiste em abrir os olhos do coração para ver o que temos em Cristo.
Como é que você sabe que os seus pecados estão per­doados? É porque o seu pastor lho disse? Não, você simplesmente o sabe. Se alguém lhe perguntar como sabe, apenas responderá: "Eu sei". Tal conhecimento vem ° por revelação do próprio Senhor. Evidentemente, o fato do perdão dos pecadores está na Bíblia, mas para a Palavra de Deus escrita se transformar em Palavra de Deus viva em você, Deus teve que lhe dar o "espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele" (Ef 1.17). Você precisou ficar conhecendo Cristo deste modo, e é sempre assim: há ocasiões, relativas a cada nova revelação de Cristo, em que se sabe no próprio coração e se "vê" no espírito. Uma luz brilha no seu íntimo de modo que você fica persuadido do fato. O que é verdadeiro acerca do perdão dos pecados não é menos verdadeiro a respei­to da libertação do pecado. Quando a luz de Deus come­ça a raiar em nosso coração, vemos que estamos em Cris­to. Não é porque alguém nos disse isto, nem meramente porque Romanos 6 o afirma. É algo mais do que isso. Sabemo-lo porque Deus no-lo revelou pelo Seu Espírito.
Talvez não o sintamos. Sabemos, no entanto, porque o temos visto. Uma vez que temos visto a nós mesmos em Cristo, nada pode abalar a nossa certeza a respeito daquele bendito fato.
Se se perguntar a alguns crentes que entraram na vida cristã normal, como chegaram a esta experiência, uns di­rão que foi desta forma, e outros, daquela. Cada um res­salta a forma específica como entrou na experiência, e cita versículos para apoiá-la; e, infelizmente, muitos cris­tãos procuram usar suas experiências especiais e suas escrituras especiais para combater outros cristãos. A ver­dade, porém, é que embora entrem por diferentes cami­nhos na vida mais profunda, não devemos considerar mutuamente exclusivas as experiências ou doutrinas que sublinham, e antes, complementares. Uma coisa é certa: qualquer experiência verdadeira que tenha valor à vista de Deus, teve que ser alcançada através de se descobrir algo mais do significado da Pessoa e da Obra do Senhor Jesus. Esta é a prova crucial e absolutamente segura.
Paulo nos mostra que tudo depende desta descoberta: "Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos" (Rm 6.6).

A revelação divina é essencial ao conhecimento

Assim sendo, nosso primeiro passo é buscar da parte de Deus o conhecimento que vem da revelação, não de nós mesmos, mas da obra consumada do Senhor Jesus Cristo na Cruz. Quando Hudson Taylor, o fundador da Missão para o Interior da China, entrou na vida cristã normal, foi da seguinte forma. Ele fala do problema que havia muito estava sentindo: o de saber como viver "em Cristo", como derivar da Videira a seiva para si próprio. Sabia perfeitamente que devia ter a vida de Cristo ema­nando através de si mesmo, e, contudo, sentia que não o tinha conseguido. Via claramente que as suas necessidades deviam ser satisfeitas em Cristo. "Eu sabia" — di­zia ele, escrevendo à sua irmã, de Chinkiang, em 1869 — "que se eu apenas pudesse permanecer em Cristo tudo iria bem. Mas, eu não conseguia". Quanto mais procurava entrar em Cristo, tanto mais se achava como que deslizando, por assim dizer, até que um dia a luz brilhou, a revelação veio e ele entendeu tudo.
"Sinto que está aqui o segredo: não em perguntar co­mo vou conseguir tirar a seiva da videira para colocá-la em mim mesmo, mas em me recordar que Jesus é a Vi­deira — a raiz, a cepa, as varas, os renovos, as folhas, a flor, o fruto, tudo, na verdade".
Depois, ao dirigir-se a um amigo que o tinha auxilia­do:
"Não preciso de fazer de mim mesmo uma vara. Sou parte dEle e apenas preciso crer nisso e agir de conformi­dade. Já há muito, tinha visto esta verdade na Bíblia, mas agora creio nela como realidade viva".
Foi como se alguma verdade que sempre existia se tornasse verdadeira para ele pessoalmente, sob uma nova forma. Outra vez escreve à irmã:
"Não sei até que ponto serei capaz de me tornar inte­ligível a este respeito, pois que não há nada novo ou es­tranho ou maravilhoso - er todavia, tudo é novo! Numa palavra, "Eu era cego, e agora vejo". Estou morto e crucificado com Cristo — sim, e ressurreto também e assun­to... Deus me reconhece assim, e me diz que é assim que me considera. Ele é Quem sabe... Oh, a alegria de ver esta verdade! Oro, com todas as forças do meu ser, para que os olhos do teu entendimento possam ser iluminados, para que vejas as riquezas que livremente nos foram dadas em Cristo, e que te regozijes nelas".
Realmente, é coisa grandiosa ver que estamos em Cris­to! Procurar entrar numa sala dentro da qual já estamos seria criar em nós um senso de confusão enorme — pen­semos no absurdo de pedir a alguém que nos ponha lá dentro.. Se reconhecemos o fato de que já estamos den­tro, não fazemos mais esforços para entrar. Se tivéssemos mais revelação, teríamos menos orações e mais lou­vores. Muitas das nossas orações a nosso favor, são profe­ridas porque somos cegos a respeito daquilo que Deus fez.
Lembro-me de um dia em Xangai quando falava com um irmão bastante exaltado e preocupado quanto à sua condição espiritual. Dizia ele: "Existem tantos que vi-_ vem vidas belas e santas! Sinto vergonha de mim mesmo. Chamo-me cristão, e, todavia, quando me comparo com outros, sinto que não sou cristão à altura, de forma algu­ma. Quero conhecer essa vida crucificada, essa vida ressurreta, mas não a conheço. Não vejo forma de alcançá-la". Outro irmão estava conosco e ambos falamos duran­te duas horas ou mais, tentando levar o homem a ver que nada poderia ter, separadamente de Cristo, mas os nossos esforços não alcançaram êxito. Disse o nosso amigo: "A melhor coisa que se pode fazer é orar". "Mas, se Deus já lhe deu tudo, por que precisa de orar? " per­guntamos. "Ele não o fez", respondeu o homem, "visto que eu ainda perco o meu domínio próprio, falho ainda constantemente; de modo que devo continuar a orar". "Bem", dissemos, "alcança aquilo por que ora? ". "La­mento dizer que não consigo nada", respondeu. Tenta­mos chamar-lhe a atenção para o fato de que, assim como ele nada fizera em favor da sua própria justificação, assim também ele não precisava fazer coisa alguma a respeito da sua santificação. Em dado momento, um terceiro irmão muito usado pelo Senhor, entrou e juntou-se a nós. Havia uma garrafa térmica em cima da mesa, e este irmão pegou nela, dizendo: "O que é isto? " "Uma garrafa térmica". "Bem, imaginemos que esta garrafa térmica pudesse orar, e que começasse a orar da seguin­te maneira: "Senhor, desejo muito ser uma garrafa tér­mica. Concede a Tua graça, Senhor, para que eu me tor­ne uma garrafa térmica. Por favor, faze de mim uma!" O que diria o amigo? ""Penso que nem mesmo uma garrafa térmica seria tão pateta", respondeu o nosso amigo. "Não faria sentido orar desse modo. Ela já é uma garrafa térmica!" Então, aquele irmão disse: "Você está fazendo exatamente a mesma coisa. Deus já o incluiu em Cristo; quando Ele morreu, você morreu; quando Ele ressuscitou, você ressuscitou. Portanto, você não pode dizer hoje: Quero morrer, quero ser crucificado; quero ter vida ressurreta. O Senhor simplesmente olha para você e diz: "Você está morto! Você tem uma vida nova!" Toda a sua oração é tão absurda como a da garrafa térmica. Você não necessita de orar ao Senhor pedindo qualquer coisa. Necessita, meramente, de ter os olhos abertos para ver que Ele já fez tudo isso".
Eis a questão. Não precisamos trabalhar para alcançar­mos a morte, nem precisamos esperar para morrer. Estamos mortos. Agora, só nos falta reconhecer o que o Senhor já fez, e louvá-Lo por isso. Uma nova luz desceu sobre aquele homem. Com lágrimas nos olhos, disse: « "Senhor, louvo-Te porque já me incluíste em Cristo. Tudo o que é dEle é meu!" A revelação chegara, e a fé possuía algo de que lançar mão. E se você pudesse ter encon­trado aquele irmão, mais tarde, que mudança perceberia!

A Cruz atinge a raiz do nosso problema

Quero recordar, mais uma vez, a natureza fundamen­tal do que o Senhor operou na Cruz, assunto que merece o maior destaque, porque precisamos entendê-lo.
Suponha que o governo do seu país quisesse enfrentar rigorosamente a questão das bebidas alcoólicas e decidis­se que todo o País ficasse sob a "lei seca". Como seria posta em prática tal decisão? Como poderíamos coope­rar? Se revistássemos cada loja, cada casa, por todo o país e destruíssemos todas as garrafas de vinho, cerveja ou pinga que encontrássemos, resolveríamos assim o pro­blema? Certamente que não. Poderíamos livrar assim a terra de cada gota de bebida alcoólica existente na praça, mas, por detrás daquelas garrafas de bebida se encon­tram as fábricas que as produzem, e se não tocássemos nas fábricas, a produção continuaria e não haveria solu­ção permanente para o problema. As fábricas produto­ras das bebidas, as cervejarias e as destilarias por todo o país, teriam que ser fechadas se quiséssemos resolver de forma permanente a questão do álcool.
Nós somos uma fábrica desta natureza, e os nossos atos são a produção. O Sangue de Jesus Cristo, nosso Senhor, resolveu a questão dos produtos, dos nossos pe­cados. De modo que a questão do que temos feito já foi tratada; será que Deus Se detém aqui? Como se trata daquilo que somos? Fomos nós que produzimos os pe­cados. A questão dos nossos pecados foi resolvida, mas como vamos nós próprios ser tratados? Crê que o Se­nhor purificaria todos os nossos pecados para então dei­xar por nossa conta enfrentarmos a fábrica que os pro­duz? Acredita que Ele inutilizaria os produtos e que deixaria por nossa conta a fonte de produção?
Fazer tal pergunta é responder-lhe. Deus não faz a obra pela metade. Pelo contrário, inutilizou os produtos e encerrou a fábrica produtora.
A obra consumada de Cristo realmente atingiu a raiz do nosso problema, solucionando-o. Para Deus não há meia medida. "Sabendo isto", disse Paulo, "que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos" (Rm 6.6). "'Sabendo isto". Sim, mas você o sabe de fato? "Ou, porventura, ignorais? " (Rm 6.3).


4

A vereda do progresso:

considerar-se

Entramos agora num assunto sobre o qual tem havido alguma confusão entre os filhos do Senhor. Diz respeito àquilo que se segue a este conhecimento. Note-se a reda­ção exata de Rm 6.6: "Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem". O tempo do verbo é muito preciso: situa o acontecimento no passado distan­te. É um acontecimento final, realizado de uma vez para sempre, e que não pode ser desfeito. O nosso velho ho­mem foi crucificado, uma vez para sempre, e jamais pode voltar à situação de não crucificação. É isto que devemos saber.
O que se segue depois de sabermos isto? O manda­mento seguinte se acha no v. 11: "Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado", que é a seqüência natural do v. 6. Leiamo-os juntamente: "Sabendo... que foi crucificado com ele o nosso velho homem... conside­rai-vos mortos". Esta é a ordem. Quando sabemos que o nosso velho homem foi crucificado com Cristo, o passo seguinte é considerarmos esta verdade.
Infelizmente a ênfase da verdade da nossa união com Cristo tem sido freqüentemente colocada na segunda questão, a de nos considerarmos mortos, como se fosse este o ponto de partida, enquanto que deveria ser ressal­tada a necessidade de sabermos que estamos mortos. A Palavra de Deus mostra claramente que "sabendo" deve preceder o "considerar-se". "Sabendo isto... considerai-vos". A seqüência é extremamente importante. O ato de nos considerarmos deve basear-se no conhecimento do fato divinamente revelado, pois, de outro modo, a fé não tem fundamento sobre que descansar e apoiar-se.
Deste modo, não devemos ressaltar demasiadamente o considerar-se, ao ensinar esta matéria. As pessoas sem­pre procuram considerar-se, sem previamente saber. Não tiveram primeiramente uma revelação do fato, dada pelo Espírito, mas ainda procuram considerar-se e logo se vêem a braços com toda espécie de dificuldades. Quando a tentação se manifesta, começam furiosamente a se considerar: "Estou morto; estou morto; estou morto!" Mas, no próprio ato de considerar-se, perdem a serenida­de. Depois, dizem, "Isto não dá certo, e não há valor em Romanos 6.11". Realmente, devemos reconhecer que o v. 11 não tem qualquer efeito sem o v.6. Acontece que, sem conhecermos que estamos mortos com Cristo, nossa luta de nos considerarmos se tornará sempre mais inten­sa, e o resultado será a derrota na certa.
Não quero dizer que não precisamos realizar esta ver­dade na nossa experiência. Há a efetuação dessa morte em termos de experiência, de que trataremos agora, mas a base de tudo é que já fui crucificado, já está feito.
Qual é o segredo de considerar, então? É revelação: precisamos de revelação da parte do próprio Deus (Mt 16.17; Ef 1.17,18). Devemos ter os olhos abertos para o fato da nossa união com Cristo, e isso é algo mais do que conhecê-la como doutrina. Tal revelação não é coisa vaga e indefinida. Muitos de nós podemos recordar o dia em que vimos claramente que Cristo morreu por nós, e devemos ter igual certeza da hora em que percebemos que nós morremos com Cristo. Não deve ser nada de confuso, mas algo muito definido, porque é a base em que prosseguimos. Estou morto não porque me consi­dero assim, mas por causa daquilo que Deus fez para comigo em Cristo — por isso considero-me morto. É este o verdadeiro sentido de considerar-se. Não se trata de considerar-se para se ficar morto, mas de con­siderar-se morto porque essa é a pura realidade.

O segundo passo: "Assim, também vós considerai-vos"

O que significa considerar-se? "Considerar", no Gre­go, significa fazer contas, fazer escrituração comercial.
A contabilidade é a única coisa no mundo que nós, seres humanos, sabemos fazer corretamente. O artista pinta uma paisagem. Pode fazê-lo com perfeita exatidão? O historiador pode assegurar exatidão absoluta de qualquer relato, ou o cartógrafo a perfeita exatidão de qualquer mapa? O melhor que podem fazer são aproximações notáveis. Mesmo na conversação de cada dia, procuran­do contar algum incidente com a melhor intenção de ser honestos e fiéis à verdade, não conseguimos exatidão completa. Há, na maioria das vezes, uma tendência ao exagero, aumentando ou diminuindo, empregando uma palavra a mais ou a menos. O que pode então um ho­mem fazer que seja absolutamente digno de confiança? Aritmética! Não há, neste campo, qualquer possibilida­de de errar. Uma cadeira, mais uma, é igual a duas cadei­ras. Isto é verdade em Londres e na Cidade do Cabo, em Nova Iorque no Ocidente ou em Singapura no Oriente. Por todo o mundo, e em todos os tempos, um mais um é igual a dois.
Tendo dito, pois, que a revelação leva naturalmente ao ato de considerar-se, não devemos perder de vista que um mandamento nos foi dado: "Considerai-vos..." Há uma atitude definida a tomar. Deus pede que façamos a escri­turação, lançando na conta: "Eu morri", e que permane­çamos nesta realidade. Quando o Senhor Jesus estava na Cruz, eu estava lá nEle; portanto, eu o considero como um fato verdadeiro. Considero e declaro que morri nEle. Paulo disse: "Considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus". Como é isto possível? "Em Cristo Jesus". Nunca se esqueça que é sempre, e somente, verdade em Cristo. Se você olha para si próprio, não achará aí esta morte — é questão de fé nEle, de olhar para o Se­nhor e ver o que Ele fez. Reconheça e considere o fato em Cristo, e permaneça nesta atitude de fé.

Considerar-se e a fé

Os primeiros quatro capítulos e meio de Romanos falam de fé, fé e fé. Somos justificados pela fé nEle (Rm 3.28; 5.1). A justificação, o perdão dos nossos pecados e a paz com Deus são nossos pela fé; sem fé, ninguém pode possuí-los. Na segunda seção de Romanos, no en­tanto, não encontramos a fé mencionada tantas vezes, e à primeira vista poderia parecer que aqui há diferença de ênfase. Não é realmente assim, porque a expressão "Considerar-se" toma o lugar das palavras "fé" e "crer". Considerar-se e a fé são, aqui, praticamente a mesma coisa.
O que é a fé? É a minha aceitação de fatos divinos, e seu fundamento sempre se acha no passado. O que se relaciona com o futuro é mais esperança do que fé, embora a fé tenha, muitas vezes, o seu objetivo ou alvo no futuro, como em Hebreus 11. Talvez seja por essa razão que a palavra aqui escolhida é considerar-se. É uma palavra que se relaciona unicamente com o passado — com aquilo que vemos já realizado ao olhar para trás e não com qualquer coisa ainda por acontecer. É este o gênero de fé descrito em Mc 11.24: "Tudo quanto em oração pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco". A declaração é que se crer que já recebeu o que pediu (isto é, evidentemente, em Cristo), então "será assim". Crer que seja provável alcançar alguma coisa, e que seja possível obtê-la, mesmo que ainda virá a obtê-la, não é fé no sentido aqui expresso. Fé é crer que já alcançou o que pede. Somente o que se relaciona com o pas­sado é fé neste sentido. Aqueles que dizem que "Deus pode" ou "Pode ser que Deus o faça", não crêem de for­ma alguma. A fé sempre diz: "Deus já o fez".
Quando é, portanto, que tenho fé no que diz respeito à minha crucificação? Não quando digo que Deus pode ou quer ou deve crucificar-me, mas quando, com alegria, digo: "Graças a Deus, em Cristo eu estou "crucificado!" Em Romanos 3 vemos o Senhor Jesus levando os nos­sos pecados e morrendo como nosso Substituto, para que pudéssemos ser perdoados. Em Romanos 6, vemo-nos incluídos na morte de Cristo, por meio da qual Ele con­seguiu a nossa libertação. Quando nos foi revelado o pri­meiro fato, cremos nEle para a justificação. Deus nos manda considerar o segundo fato para a nossa libertação. De modo que, para fins práticos, "Considerar-se" na segunda seção de Romanos toma o lugar de "fé" na primeira seção. Não há diferença de ênfase; a vida cristã normal é vivida progressivamente, do mesmo modo que inicialmente se entra nela, pela fé no fato divino: em c e Cristo e na Sua Cruz.

Tentação e fracasso, desafios à fé

Para nós, os grandes fatos da história são que o Sangue trata de todos os nossos pecados e que a Cruz trata de nós próprios. Mas que diremos com respeito à tenta­ção? Qual deverá ser a nossa atitude quando, depois de termos visto e crido nestes fatos, descobrimos que os ve­lhos desejos querem surgir de novo? Pior ainda, se caí­mos em pecado conhecido, mais uma vez? Então cai por terra o que foi dito acima?
Lembremo-nos de que um dos principais objetivos do Diabo é nos levar a duvidar das realidades divinas. (Com­pare Gênesis 3.4).
Após termos percebido, pela revelação do Espírito de Deus, que realmente estamos mortos com Cristo, e que devemos nos considerar assim, o Diabo virá, dizendo: "Alguma coisa está se mexendo no seu íntimo; o que vo­cê diz a isto? Pode dizer que isto é morte? " Qual será a nossa resposta em tal caso? Aqui está a prova crucial. Vamos crer em fatos tangíveis do plano natural, que estão perante os nossos olhos, ou nos fatos intangíveis do plano espiritual, que não se vêem nem se provam cientificamente?
Devemos ser muito cuidadosos a este respeito. É importante recordarmos os fatos divinos declarados na Palavra de Deus sobre os quais deve apoiar-se a nossa fé. Em que termos Deus declara que foi efetuada a nossa libertação? Não se diz que o pecado, como um princípio em nós, foi desarraigado ou removido. Não, porque está bem presente, e se lhe for dada oportunidade, nos vencerá e nos levará a cometer mais pecados, quer cons­ciente quer inconscientemente. É por essa razão que sempre devemos tomar conhecimento da operação do precioso Sangue.
O método de Deus ao tratar dos pecados cometidos é direto, apagando-os da lembrança por meio do Sangue, mas, no que diz respeito ao princípio do pecado e a li­bertação do seu poder, Deus opera através do método indireto: não remove o pecado, e, sim, o pecador O nos­so velho homem foi crucificado com Cristo, e, por causa disto, o corpo, que antes fora veículo do pecado, fica de­sempregado (Rm 6.6). O pecado, o velho senhor, ainda está presente, mas o escravo que o servia foi morto, estando assim fora do seu alcance. Seus membros agora estão desempregados. A mão que jogava de apostas fica desempregada, assim como a língua de quem xingava, e tais membros passam agora a ser úteis, em vez disso, "a Deus como instrumentos de justiça" (Rm 6.13).
A libertação do pecado é tão real, que João pôde escrever, confiante: "Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do pecado... não pode viver pecando" (I João 3.9), expressão essa que, erradamente compreen­dida, poderia nos confundir. João não quis dizer que o pecado nunca mais entra em nossa história e que não cometeremos mais pecados. Diz que o pecar não está na natureza daquele que é nascido de Deus. A vida de Cristo foi plantada em nós pelo novo nascimento, e a Sua natureza não é caracterizada por cometer pecados. Há, po­rém, uma grande diferença entre a natureza de uma coisa e a sua história, e há uma grande diferença entre a natureza da vida que há em nós e a nossa história.
A questão consiste em escolher quais os fatos a que damos valor e que orientam a nossa vida: os fatos tangí­veis da nossa experiência diária ou o fato muito mais importante, de que agora estamos "em Cristo". O poder . da Sua ressurreição está ao nosso lado, e todo o poder de Deus está operando na nossa salvação (Rm 1.16), mas o assunto ainda depende de tornarmos real, na história, o que já é uma realidade divina.
"Ora a fé é a certeza das coisas que se esperam e a con­vicção de fatos que se não vêem" (Hb 11.1), e: "as coi­sas que se não vêem são eternas" (II Co 4.18). Creio que todos sabemos que Hb 11.1 é a única definição de fé na Bíblia. É importante que compreendamos esta definição. O Novo Testamento de J. N. Darby traduz bem este tre­cho: "A fé é a substancializaçao das coisas que se esperam".
A palavra "substancialização" é boa; significa tornar reais, na experiência, as coisas que se esperam.
Como é que "substancializamos" uma coisa? Faze­mos isso todos os dias. Você conhece a diferença entre substância e "substancializar"? Uma substância é um objeto, uma coisa na minha frente. "Substancializar" significa que tenho certo poder ou faculdade que torna aquela substância real para mim. Por meio dos nossos sentidos, podemos tomar certas coisas do mundo, da natureza, e transferi-las para o nosso conhecimento e percepção interna, de modo que possamos apreciá-las. A vista e o ouvido, por exemplo, são duas das faculda­des que me permitem "substancializar" da luz e do som. Temos cores: vermelho, amarelo, verde, azul e violeta, e estas cores são coisas reais. Mas se eu fechar os olhos, a cor não continua sendo real para mim; é sim­plesmente nada — para mim. Com a faculdade da vista, contudo, possuo o poder de "substancializar", e assim, o amarelo torna-se amarelo para mim.
Se eu fosse cego, não poderia distinguir a cor, e se me faltasse a faculdade de ouvir, não poderia apreciar a mú­sica. A música e a cor, no entanto, são realidades que não são afetadas por minha capacidade ou incapacidade de apreciá-las. Aqui estamos considerando coisas que, embora não sejam vistas, são eternas e, portanto, reais. Evidentemente, não é com nossos sentidos naturais que poderemos "substancializar" as coisas divinas: há uma faculdade para "a substancialização das coisas que se esperam", das coisas de Cristo — é a fé. A fé faz com que as coisas que são reais, sejam reais na minha expe­riência. A fé "substancializa" para mim as coisas de Cristo. Centenas de milhares de pessoas lêem Rm 6.6: "Foi crucificado com Ele o nosso velho homem". Para a fé, esta é a verdade; para a dúvida, ou para o mero assentimento moral, sem a iluminação espiritual, não é verda­de.
Lembremo-nos de que não estamos lidando com promessas, e sim, com fatos. As promessas de Deus nos são reveladas pelo Espírito, a fim de que nos apropriemos delas; os fatos, porém, permanecem fatos, quer creiamos neles ou não. Se não crermos nos fatos da Cruz, estes ainda permanecerão tão reais como sempre, mas não terão qualquer valor para nós. A fé não é necessária pa­ra tornar estas coisas reais em si mesmas, mas pode "substancializá-las" e torná-las reais em nossa experiên­cia.
Qualquer coisa que contradiga a verdade da Palavra de Deus deve ser considerada mentira do Diabo. Ao fato maior declarado por Deus, deve-se curvar qual­quer fato que pareça real ao nosso sentimento. Passei por uma experiência que servirá para ilustrar este princí­pio. Há alguns anos, encontrava-me doente. Passei seis noites com febre alta, sem conseguir dormir. Finalmente, Deus me deu, através das Escrituras, uma palavra pessoal de cura e, portanto esperava que se desvanecessem ime­diatamente todos os sintomas da enfermidade.Ao invés disso, não conseguia conciliar o sono, e me senti ainda mais perturbado; a temperatura aumentou, o pulso batia mais rapidamente e a cabeça doía mais do que antes. O inimigo perguntava: "Onde está a promessa de Deus". "Onde está a sua fé? Qual o valor das suas orações"? Des­ta forma, senti-me tentado a levar o assunto de novo a Deus em oração, mas fui repreendido por esta escritura que me veio à mente: "A tua palavra é a verdade" (João 17.17). Se a palavra de Deus é verdade, pensava, então o que significam estes sintomas? Devem ser todos eles mentiras. Assim, declarei ao inimigo: "Esta falta de so­no é uma mentira, esta dor de cabeça é uma mentira, es­ta febre é uma mentira, esta pulsação elevada é uma mentira. Em face do que Deus me disse, os presentes sinto­mas de enfermidade são apenas as tuas mentiras, e a palavra de Deus, para mim, é a verdade". Em cinco minutos, eu já estava dormindo, e, na manhã seguinte, acordei perfei­tamente são.
Ora, num caso pessoal como este, há a possibilidade de eu me ter enganado a respeito do que Deus dissera, mas jamais poderá haver qualquer dúvida quanto ao fato da Cruz. Devemos crer em Deus, não importa quão convincentes pareçam os instrumentos de Satanás.
Um mentiroso, habilmente, não só por palavras, mas também por gestos e atos, pode passar tão facilmente uma moeda falsa, como dizer uma mentira. O Diabo é um mentiroso hábil e não podemos esperar que ele, ao mentir, se limite ao emprego de palavras. Ele recorrerá a sinais e sentimentos e experiências mentirosas nas suas tentativas de abalar a nossa fé na Palavra de Deus. Permita-se-me esclarecer que não nego a realidade da "carne". Ainda terei muito mais para dizer acerca deste assunto, no nosso estudo. No momento, porém, estou tratando da nossa firmeza na posição que nos foi revelada em Cristo. Logo que aceitamos que a nossa morte em Cristo é uma realidade, Satanás envidará seus melhores esforços para demonstrar, convincentemente, pela evidência da nossa experiência diária, que longe de estarmos mortos, ainda estamos bem vivos. Assim temos que escolher: acreditaremos na mentira de Satanás ou na verdade de Deus? Vamos ser governados pelas aparências ou pelo que Deus diz?
Estou eu morto em Cristo, quer o sinta, quer não. Co­mo posso ter a certeza disso? Porque Cristo "morreu; e desde que "um morreu por todos, logo todos morreram" (II Co 5.14). Quer a minha experiência o comprove, quer pareça desaprová-lo, o fato permanece inalterável. Enquan­to eu permanecer naquele fato, Satanás não poderá pre­valecer contra mim. Lembremo-nos de que o seu ataque é sempre contra ã nossa certeza. Se ele puder nos fazer duvidar da Palavra de Deus, então o seu objetivo é alcançado, e ele nos mantém sob o seu poder; mas se descan­samos, inabaláveis, na certeza do fato declarado por Deus certos de que Sua obra e Sua Palavra são imutáveis, po­deremos rir de qualquer tática que Satanás adotar.
"Andamos por fé, e não pelo que vemos" (II Co 5.7). Você provavelmente conhece a ilustração do Fato, da Fé e da Experiência que caminhavam no topo de uma parede. O Fato caminhava na frente, firmemente, não se voltando, nem para a esquerda nem para a direita, e sem nunca olhar para trás. A Fé seguia-o e tudo andou bem enquanto conservou os olhos postos no Fato; mas, logo que se preocupou com a Experiência, voltando-se para observar o progresso desta, perdeu o equilíbrio e caiu da parede para baixo, e a pobre da Experiência caiu com ela.
Toda a tentação consiste, primariamente, em desviar os olhos do Senhor e deixar-se impressionar com as apa­rências. A fé sempre encontra uma montanha, uma mon­tanha de experiências que parecem fazer da Palavra de Deus, uma montanha de aparente contradição no pla­no de fatos tangíveis — dos fracassos nas atitudes, bem como no plano dos sentimentos e sugestões — então, ou a Fé ou a montanha tem que sair do caminho. Não po­dem permanecer ambas. Mas o que é triste é que, muitas vezes, a montanha fica e a fé vai embora. Isto não deve­ria ser assim. Se recorrermos aos nossos sentidos na busca da verdade, verificaremos que as mentiras de satanás muitas vezes condizem com a nossa experiência; se, porém, nos recusamos a aceitar como obrigatória qual­quer coisa que contradiga a Palavra de Deus e mantiver-mos uma atitude de fé exclusivamente nEle, verificare­mos que as mentiras de Satanás começam a dissolver-se e que a nossa experiência vai condizendo progressiva­mente com a Palavra.
É a nossa ocupação com Cristo que produz este resul­tado, porque significa que Ele Se torna progressivamen­te real para nós, em situações reais. Em dada situação, ve­mos Cristo como real justificação, real santidade, real vida ressurreta — para nós. O que vemos objetivamente nEle, opera agora subjetivamente em nós — de maneira bem real no entanto — para que Ele seja manifestado em nós, naquela situação. Esta é a marca da maturidade. É isso que Paulo quer dizer na sua palavra aos Gálatas: "De novo sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós" (4.19). A fé é a "substancialização" dos fatos de Deus, daquilo que é eternamente verdade.

Permanecer nEle

Estamos familiarizados com as palavras do Senhor Je­sus: "Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós*' (João 15.4). Elas nos lembram, mais uma vez, que jamais teremos que lutar para entrar em Cristo. Não nos man­dam alcançar aquela posição, porque já estamos lá; a ordem é permanecermos onde já fomos colocados. Foi um ato do próprio Deus que nos colocou em Cristo, e nós devemos nEle permanecer.
Além disso, este versículo estabelece o princípio divi­no de que Deus fez a obra em Cristo e não em nós, co­mo indivíduos. A morte e a ressurreição do Filho de Deus, que nos incluíram a todos, cumpriram-se, em pri­meiro lugar, plena e finalmente, à parte de nós. É a histó­ria de Cristo que tem que se tornar a experiência do cristão, e não temos experiência espiritual separadamen­te dEle. As Escrituras dizem que fomos crucificados com ELE, que nELE fomos vivificados, ressuscitados e senta­dos por Deus nos lugares celestiais, e que nELE estamos perfeitos (Rm 6.6; Ef 2.5,6; Cl 2.10). Não se trata pre­cisamente de alguma coisa que ainda tenha que efetuar-se em nós (embora exista este aspecto). É algo que já foi efetuado em associação com Ele.
Verificamos, nas Escrituras, que não existe experiên­cia cristã como tal. O que Deus fez, no Seu propósito gracioso, foi incluir-nos em Cristo. Ao tratar de Cristo, Deus tratou do cristão; no Seu trato com a Cabeça, tra­tou também de todos os membros. É inteiramente erra­do pensar que possamos experimentar algo da vida espi­ritual meramente em nós mesmos e separadamente dEle. Deus não pretende que adquiramos uma experiência exclusivamente pessoal e não quer realizar qualquer coi­sa deste gênero em você e em mim. Toda a experiência espiritual do cristão tem Cristo como sua fonte de reali­dade. O que chamamos a nossa "experiência" é somente a nossa entrada na história e na experiência de Cristo.
Seria ridículo se uma vara de videira tentasse produ­zir uvas vermelhas, e outra, uvas verdes, e ainda outra, uvas roxas; as varas não podem produzir uvas com carac­terísticas próprias, independentemente da videira, pois é a videira que determina o caráter das varas. Todavia, há crentes que buscam experiências, como experiências. Para eles, a crucificação é uma coisa, a ressurreição é outra, a ascensão é outra, e nunca se detêm para pensar que todas estas coisas estão relacionadas com uma Pessoa. Somente na medida em que o Senhor abrir os nossos olhos para ver a Pessoa, é que teremos qualquer expe­riência verdadeira. Experiência espiritual verdadeira signi­fica que descobrimos alguma coisa em Cristo e que entramos na sua posse; qualquer experiência que não re­sulte de uma nova compreensão dEle está condenada a se evaporar muito rapidamente. "Descobri aquilo em Cristo; então, graças a Deus, pertence-me. Possuo-o, Senhor, porque está em Ti". Que coisa maravilhosa co­nhecer as realidades de Cristo como o fundamento da nossa experiência!
Assim, o princípio de Deus ao nos fazer progredir experimentalmente, não consiste em nos dar alguma coisa, de nos colocar em determinadas situações a fim de nos conceder algo que possamos chamar de experiên­cia nossa. Não se trata de Deus operar em nós de tal maneira que possamos dizer: "Morri com Cristo no mês de março passado", ou "ressuscitei da morte no dia pri­meiro de janeiro de 1937", ou, ainda, "quarta-feira pedi uma experiência definida e alcancei-a". Não, esse não é o caminho. Eu não busco experiências em si mesmas, neste presente ano da graça. Não se deve permitir que o tempo domine o meu pensamento neste ponto.
Alguns perguntarão: e o que dizer a respeito das cri­ses por que tantos de nós temos passado? Não há dúvida que alguns passaram por crises nas suas vidas. Por exem­plo, George Muller podia dizer, curvando-se até ao chão: "Houve um dia em que George Muller morreu". O que diríamos a isto? Bem, não estou duvidando da realidade das experiências espirituais pelas quais passamos, nem a importância das crises a que Deus nos traz no nosso andar com Ele; pelo contrário, já acentuei a necessidade que temos de ser absolutamente definidos acerca de tais cri­ses em nossas vidas. Mas, a verdade é que Deus não dá aos indivíduos experiências individuais, e, sim, apenas uma participação naquilo que Deus já fez. É a realização no tempo das coisas eternas. A história de Cristo torna-se a nossa experiência e a nossa história espiritual; não temos uma história separadamente da Sua. Todo o tra­balho, a nosso respeito, não é efetuado em nós, aqui, mas em Cristo. Ele não faz um trabalho separado, nos indivíduos, à parte do que Ele fez no Calvário. Mesmo a vida eterna não nos é dada como indivíduos: a vida está no Filho, e: "quem tem o Filho tem a vida". Deus fez tudo no Seu Filho e incluiu-nos nEle; estamos incor­porados em Cristo.
Ora, o que queremos frisar com tudo isto é que há um valor prático muito real na posição de fé que se expressa assim: "Deus me incluiu em Cristo e, portanto, tudo que é verdade a respeito dEle também se aplica a mim. Per­manecerei nEle. Satanás sempre procura nos convencer, através de tentações, fracassos, sofrimentos, provações, que estamos fora de Cristo. O nosso primeiro pensamen­to é que, se estivéssemos em Cristo, não estaríamos neste estado e, portanto, julgando pelos nossos sentimentos devemos estar fora dEle; é então que começamos a orar: "Senhor, coloca-me em Cristo". Não! O mandamento de Deus é que "permaneçamos" em Cristo, e é este o caminho do livramento. Mas por quê assim? Porque isso dá a Deus a possibilidade de intervir nas nossa vidas e realizar a Sua obra em nós. Assim, há lugar para a ope­ração do Seu poder superior — o poder da ressurreição (Rm 6.4,9,10) - de modo que os fatos de Cristo se tor­nam progressivamente os fatos da nossa experiência diá­ria e onde antes "o pecado reinou" (Rm 5.21), fazemos agora, com regozijo, a descoberta de que verdadeiramen­te já não servimos o pecado como escravos (Rm 6.6).
À medida que permanecemos firmes no fundamento daquilo que Cristo é, achamos que tudo o que é verdade a Seu respeito, se torna experimentalmente verdade em nós. Se,ao invés disto,viermos para a base daquilo que somos, em nós próprios, acharemos que tudo que é ver­dade a respeito da nossa velha natureza continua a ser verdade a nosso respeito. Se pela fé nos conservamos firmes naquela posição, temos tudo; se regressarmos a esta posição, nada temos. Assim é que tantas vezes va­mos procurar a morte do nosso eu no lugar errado. E em Cristo que a encontramos. Se olhamos para dentro de nós mesmos, verificamos que estamos muito vivos para o pecado; se olhamos além de nós mesmos, para o Senhor, Deus determina que nestas condições, a morte se transforma em realidade, para que a "novidade de vida" se manifeste em nós. Estamos assim "vivos para Deus" (Rm 6.4,11).
"Permanecei em mim e eu em vós". Esta frase consis­te em um mandamento ligado a sua promessa. Quer dizer que o trabalho de Deus tem um aspecto objetivo e um subjetivo, e o lado subjetivo depende do objetivo; o "Eu em vós" é o resultado da nossa posição de permanência nEle. Devemos nos guardar de preocupação demasiada quanto ao lado subjetivo das coisas, o que nos levaria a ficar voltados para nós mesmos. Devemos permanecer naquilo que é objetivo — "permanecei em mim" — e dei­xar que Deus tome conta do aspecto subjetivo. Ele Se comprometeu a fazer isso.
Tenho ilustrado este princípio por meio da luz elétri­ca. Estamos num quarto e já está escurecendo; gostaría­mos de ter luz para ler alguma coisa. Perto de nós, na me­sa, há um abajur. O que devemos fazer? Devemos olhar atentamente para ele para ver se a luz se acende? Torna­mos um pano para polir a lâmpada? Não, é só ir até o interruptor e ligar a corrente. É só voltar a nossa atenção à fonte de força, e tomando as devidas medidas ali, a luz se acende aqui.
Da mesma maneira, em nosso andar com o Senhor, a nossa atenção deve fixar-se em Cristo. "Permanecei em mim, e eu em vós" — esta é a ordem divina. A fé nos fa­tos objetivos os torna subjetivamente verdadeiros para nós. É assim que o apóstolo Paulo apresenta esta verda­de: "Todos nós... contemplando... a glória do Senhor, somos transformados na sua própria imagem" (II Co 3. 18). O mesmo princípio domina na vida frutífera: "Quem permanece em mim, e Eu nele, esse dá muito fruto" (Jo (João 15.5). Não tentamos produzir fruto, nem nos con­centramos no fruto produzido. A parte que nos toca é olharmos para Ele. Que o façamos, porque Ele Se encar­rega de cumprir a Sua palavra em nós.
Como é que permanecemos em Cristo? "Vós sois de Deus em Cristo Jesus". Coube a Deus nos colocar em Cristo, e Ele o fez. Agora, permaneçamos ali. Não volte­mos para as nossas próprias bases. Nunca olhemos para nós mesmos, como se não estivéssemos em Cristo. Olhe­mos para Cristo, e vejamo-nos nEle. Permaneçamos nEle. Descansemos na verdade de que Deus nos incluiu no Seu Filho, e vivamos na expectativa de que Ele completará a Sua obra em nós. Cabe a Ele cumprir a gloriosa promes­sa de que "o pecado não terá domínio sobre vós" (Rm 6.14).


5

A linha divisória da Cruz

O reino deste mundo não é o reino de Deus. Deus ti­nha no Seu coração um sistema cósmico — um universo da Sua criação — que teria Cristo, o Seu Filho, por cabe­ça (Cl 1.16,17). Satanás, porém, operando através da car­ne do homem, estabeleceu um sistema rival, conhecido nas Escrituras como "este mundo" — sistema em que nós estamos envolvidos e que ele próprio domina. Ele se tornou realmente "o príncipe deste mundo" (João 12.31).
Desta forma, nas mãos de Satanás, a primeira criação se transformou em velha criação, e Deus já não Se preo­cupa primariamente com aquela, e, sim, com a segunda e nova. Está introduzindo a nova criação, o novo reino e o mundo novo, e nada da velha criação, do velho reino ou do mundo velho pode ser transferido a ela. Trata-se ago­ra de dois reinos rivais, e a qual deles damos a nossa lealdade.
O apóstolo Paulo, naturalmente, não nos deixa em dú­vidas sobre qual dos dois reinos realmente é o nosso, dizendo-nos que Deus, pela redenção, "nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Fi­lho do Seu amor" (Cl 1.13).
Para nos transportar para o Seu reino novo, Deus tem que fazer em nós algo novo. Precisa nos transformar em novas criaturas, porque sem sermos criados de novo, não nos enquadraremos jamais no reino novo. "O que é nas­cido da carne, é carne"; e, "Carne e sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção" (João 3.6; I Co 15.50). A carne, por mais edu­cada, culta e melhorada que seja, continua sendo carne.
O que determina se estamos aptos para o novo reino é a criação à qual pertencemos. Pertencemos à antiga criação ou à nova? Nascemos da carne ou do Espírito? Em última análise, é nossa origem que resolve se somos aptos para o novo reino. A questão não é de sermos bons ou maus, é de pertencermos à carne ou ao Espírito. "O que é nascido da carne, é carne", e nunca será outra coi­sa. O que pertence à velha criação, nunca poderá ser transferido para a nova.
Uma vez que realmente compreendemos o que Deus procura: algo inteiramente novo para Si, perceberemos que nada há do mundo velho com que possamos contribuir para o novo. Deus nos desejou para Si mesmo, mas não nos poderia levar assim como estávamos à nova situação que nos oferece; assim, teve que acabar com nossa velha vida através da Cruz de Cristo, e então, pela ressurreição de Cristo, nos oferecer uma vida nova. "Se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas" (II Co 5.17). Sendo agora no­vas criaturas, com uma nova natureza e uma nova gama de faculdades, podemos entrar no novo reino, e no novo mundo.
A Cruz foi o meio que Deus empregou para pôr fim às "coisas antigas", pondo inteiramente à parte o nosso "velho homem", e a ressurreição foi o meio que Ele empregou para nos transmitir tudo que era necessário para a nossa vida naquele mundo novo. "Para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida" (Rm 6.4).
O maior negativo do universo é a Cruz, porque por meio dela, Deus riscou e destruiu tudo o que não era dEle mesmo; o maior positivo no universo é a ressurrei­ção, pois por meio dela Deus trouxe à existência tudo o que Ele quer ter na nova esfera. Assim, a ressurreição está no limiar da nova criação. É coisa abençoada ver que a Cruz acaba com tudo aquilo que pertence ao primeiro sistema e que a ressurreição introduz tudo o que perten­ce ao segundo. Tudo o que teve o seu começo antes da ressurreição deve ser abolido. A ressurreição deve ser, antes de tudo, o novo ponto de partida para Deus.
Temos, pois, dois mundos diante de nós, o velho e o novo. No velho, Satanás tem domínio absoluto. Você pode ser um homem bom na velha criação, mas, enquan­to a ele pertencer, está sob a sentença de morte, porque coisa alguma da velha criação pode ter acesso à nova. A Cruz é a declaração de Deus de que tudo o que pertence à velha criação tem que morrer. Nada do primeiro Adão pode passar para além da Cruz; tudo finda ali. Quanto mais cedo percebemos isso, melhor, pois foi pela Cruz que Deus traçou para nós um caminho de escape daque­la velha criação. Deus reuniu, na Pessoa do Seu Filho, tu­do o que era de Adão, e crucificou-O; assim, tudo o que era de Adão foi abolido por meio dEle. Depois, por assim dizer, Deus fez uma proclamação por todo o uni­verso, dizendo: "Pela Cruz, Eu afastei tudo quanto não é de Mim; vós, que pertenceis à velha criação, estais to­dos incluídos nisso; vós também fostes crucificados com Cristo!" Nenhum de nós pode escapar àquele veredito.
Isso nos leva ao assunto do batismo. "Ou, porventura, ignorais que todos os que fomos batizados em Cristo Je­sus, fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepul­tados com ele na morte pelo batismo" (Rm 6.3,4). Qual é o significado destas palavras?
O batismo, nas Escrituras, está associado com a salva­ção. "Quem crer e for batizado será salvo" (Mc 16.16). Não podemos falar, biblicamente, de "regeneração batismal", mas podemos falar de "salvação batismal". O que é a salvação? Relaciona-se não com os nossos pecados, nem com o poder do pecado, mas com o Cosmos, ou sistema do universo. Estamos envolvidos no sistema sa­tânico. Ser salvo, significa evadir-se deste sistema para o sistema cósmico de Deus.
Na Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, segundo diz Paulo, "o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo" (Gl 6.14). Esta é a ilustração desenvolvida por Pedro quando escreve acerca das oito almas que fo­ram "salvas pela água" (I Pe 3.20). Entrando na arca, Noé e os que estavam com ele marcharam, pela fé, para fora daquele mundo velho e corrupto, com destino a um mundo novo. Não se tratava de eles, pessoalmente, não se te­rem afogado tanto quanto de se encontrarem fora daque­le sistema corrupto. Isto é salvação.
Depois, Pedro prossegue: "a qual, figurando o batismo agora também vos salva" (v.21). Noutras palavras, aquele aspecto da Cruz que é figurado no batismo, nos liberta deste mundo mau e, pelo nosso batismo na água, confir­mamos isto. É batismo "na Sua morte", pondo fim a uma criação; mas também é batismo "em Jesus Cristo", que visa uma nova criação (Rm 6.3). Afundamo-nos na água, e o nosso mundo, figurativamente, se afunda conos­co. Emergimos em Cristo, mas o nosso mundo fica afun­dado.
"Crê no Senhor Jesus, e serás salvo", disse Paulo em Filipos e "lhe pregaram a palavra de Deus, e a todos os da sua casa". A seguir foi ele batizado, e todos os s, ., (At 16.31-34). Ao fazê-lo, ele e os que estavam com ele testificaram, perante Deus, perante o povo e os poderes espirituais, que se encontravam realmente salvos de um mundo sob julgamento. Como resultado, segundo lemos, "com todos os seus, manifestava grande alegria por te­rem crido em Deus".
É claro, pois, que o batismo não é mera questão de uma taça de água, nem mesmo de um batistério de água, sendo algo muito maior, porque se relaciona tanto com a morte como com a ressurreição de nosso Senhor; e tem em vista dois mundos.

A sepultura significa o fim

Qual é a minha resposta ao veredito de Deus sobre a velha criação? Respondo, pedindo o batismo. Por quê? Em Rm 6.4, Paulo explica que o batismo significa sepul­tura: "Fomos sepultados com Ele na morte pelo batis­mo". O batismo está, evidentemente, relacionado tanto com a morte como com a ressurreição: é sepultura. Mas quem está preparado para a sepultura? Somente os mortos. De modo que, se eu peço o batismo, proclamo--me morto e apto somente para o túmulo.
Alguns têm sido ensinados a olhar para a sepultura co­mo um meio de entrar na morte; tentam morrer, fazendo-se sepultar. Quero afirmar enfaticamente que, a não ser que os nossos olhos tenham sido abertos por Deus, para ver que morremos em Cristo e que fomos sepultados com Ele, não temos o direito de ser batizados. A razão de en­trarmos na água é o nosso reconhecimento que à vista de Deus, já morremos. É disto que testificamos. A pergun­ta de Deus é clara e simples: "Cristo morreu e Eu incluí você nEle; qual a sua resposta? " Respondo: "Creio, Se­nhor, que Tu operaste a crucificação, e digo 'sim' à morte e à sepultura a que Tu me entregaste". Ele entregou-me à morte e à sepultura; ao pedir o batismo, dou meu assentimento público a este fato.
Na China, certa mulher perdeu o marido mas, sofren­do um desarranjo mental provocado pela perda, recusou-se totalmente a permitir que ele fosse sepultado. Dia após dia, durante uma quinzena, ele jazeu em casa. "Não" dizia ela, "ele não está morto; falo com ele todas as noi­tes". Não queria que o marido fosse sepultado porque a coitada não acreditava que estivesse morto. Quando é que estamos prontos a sepultar os nossos queridos? Ape­nas quando estamos absolutamente certos de que eles fa­leceram. Enquanto restar a mais tênue esperança de que eles estejam vivos, nunca quereremos sepultá-los. Quando é, pois, que peço o batismo? Quando percebo que o ca­minho de Deus é perfeito e que mereço morrer, e quan­do estou verdadeiramente persuadido de que, perante Deus, estou realmente morto. Digo então: "Graças a Deus que estou morto! Senhor, Tu me mataste; agora sepulta-me!"
Há um mundo velho e um mundo novo, e entre os dois há um túmulo. Deus já me crucificou, mas eu tenho que consentir em ser consignado ao túmulo. O meu ba­tismo confirma a sentença de Deus, pronunciada sobre mim na Cruz do Seu Filho. Declara que eu fui cortado do velho mundo e que pertenço agora ao novo. Assim, o batismo não é coisa de somenos importância. Significa para mim um corte consciente e definido com o velho modo de vida. É este o significado de Rm 6.2: "Como viveremos ainda no pecado, nós que para ele morremos? " Paulo diz, com efeito: "se vós quisésseis continuar no mundo velho, por que serieis então batizados? Nunca deveríeis ter sido batizados se tencionáveis continuar a viver no velho sistema". Uma vez que percebemos isto, desimpedimos os alicerces para a nova criação, pelo nos­so assentimento à sepultura da velha.
Em Rm 6.5, escrevendo ainda àqueles que foram bati­zados (v.3), Paulo fala de estarmos "unidos com Ele na semelhança da Sua morte", porque pelo batismo reco­nhecemos, em figura, que Deus operou uma união ínti­ma entre nós próprios e Cristo, quanto à morte e à ressurreição. Certo dia, procurava eu dar relevo a esta verdade perante um irmão. Tomávamos chá juntos, e tomei um cubo de açúcar e o coloquei na minha xícara de chá. Dois minutos depois perguntei: "Pode me dizer agora onde está o açúcar e onde se encontra o chá?" "Não", disse ele, "o irmão juntou-os e um se perdeu no outro; não podem agora ser separados". Era uma ilustração simples, mas auxiliou a perceber a intimidade e a finalidade da nossa união com Cristo na morte. Foi Deus que nos incluiu nEle, e os atos de Deus não podem ser anulados.
Qual é o significado real desta união? É que na Cruz fomos "batizados" na morte histórica de Cristo, pelo que a Sua morte tornou-se a nossa. As duas mortes então se identificaram tão intimamente que é impossível traçar uma divisão entre elas. É a este "batismo" histórico — a esta união com Cristo, operada por Deus — que damos o nosso assentimento quando nos adiantamos para sermos imersos na água. O nosso testemunho público, no ba­tismo, hoje é o nosso reconhecimento de que a morte de Cristo, há dois mil anos, foi uma morte que poderosa­mente incluiu a todos — suficientemente poderosa e inclusiva para absorver a tudo, e para pôr termo a tudo em nós que não é da parte de Deus.

Ressurreição para novidade de vida

"Se fomos unidos com ele na semelhança da sua mor­te, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição" (Rm 6.5).

Em relação à ressurreição, a figura é diferente porque algo novo é introduzido. Sou "batizado na Sua morte", mas não entro na Sua ressurreição exatamente assim, porque, louvado seja o Senhor, a Sua ressurreição entra em mim, comunicando-me vida nova. Na morte do Se­nhor ressalta-se somente "eu em Cristo". Com a ressur­reição, embora a mesma coisa seja verdade, há uma nova ênfase sobre "Cristo em mim". Como é possível que Cristo me comunique a Sua vida ressurreta? Como rece­bo eu esta vida nova? Paulo, com as suas palavras cita­das acima, sugere uma excelente ilustração, porque a pa­lavra "unidos" (ou: "plantados juntamente") pode ter no Grego o sentido de "enxertado", o que nos dá uma figura muito bela da vida de Cristo comunicada a nós através da ressurreição.
Como pode uma árvore produzir fruto de outra? Co­mo pode uma árvore inferior produzir bom fruto? So­mente por meio do enxerto. Somente se nela implantar­mos a vida de uma árvore boa. Mas, se um homem pode enxertar um ramo de uma árvore noutra, não pode Deus tomar da vida de Seu Filho, e, por assim dizer, enxertá-la em nós?
Certa mulher chinesa queimou o braço gravemente e foi levada ao hospital. A fim de evitar sérias contrações devido à cicatrização, achou-se necessário enxertar um pouco de pele nova na área lesada, mas o médico cirur­gião tentou em vão enxertar um pedaço da pele da pró­pria mulher no braço. Devido à sua idade e a uma ali­mentação deficiente, o enxerto da pele era demasiado pobre e não "pegava". Então, uma enfermeira estrangeira ofereceu um pedaço de pele e a operação foi feita com êxito. A pele nova uniu-se perfeitamente com a velha e a mulher saiu do hospital com o braço perfeitamente cu­rado; mas ficara ali um remendo de pele branca e estran­geira no seu braço amarelo, para contar aquele incidente do passado.
Se um cirurgião humano pode tomar um pedaço da pele de uma pessoa e enxertá-lo noutra, não pode o Divi­no Cirurgião implantar a vida de Seu Filho em mim? Não sei como é feito. "O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito" (João 3.8). Não sabemos explicar como Deus realizou a Sua obra em nós, só sabemos que a fez. Nada podemos nem precisamos fazer para realizá-la porque, pela ressurreição, Deus já a completou. Deus fez tudo. Há somente uma vida frutí­fera no mundo, e esta vida tem sido enxertada em mi­lhões de outras vidas. É a isto que chamamos "novo nas­cimento". O novo nascimento é quando recebo uma vida que eu não possuía antes. Não se trata de a minha vida ter sido, de algum modo, modificada, e, sim, que outra vida, uma vida inteiramente nova, inteiramente divina, veio a ser a minha vida.
Deus cortou e excluiu a velha criação, pela Cruz do Seu Filho, a fim de produzir uma nova criação, em Cris­to, pela Ressurreição. Encerrou a porta para o velho reino das trevas, e me transferiu para o reino do Seu Fi­lho Amado. Eu me glorio nisso - que, pela Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, aquele velho mundo "está crucifica­do para mim e eu para o mundo" (Gl 6.14). O meu ba­tismo é o meu testemunho público desse fato. Por meio dele, assim como pelo meu testemunho oral, faço a mi­nha confissão para a salvação.


6

A senda do progresso:

oferecendo-nos a Deus

O nosso estudo trouxe-nos a uma posição em que po­demos considerar a verdadeira natureza da consagração. Temos agora perante nós a segunda metade de Romanos 6, desde o versículo 12 até ao fim. Em Rm 6.12,13 le­mos: "Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado como instrumentos de iniqüidade; mas oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus como instrumentos de justiça". A pala­vra que aqui exprime ação é "oferecer-se", que ocorre cinco vezes nos vv. 13,16e 19.A palavra implica em consagração, mas não no sentido em que tantas vezes a entendemos. Não se trata da consagração do nosso "ve­lho homem" com os seus instintos e recursos — a nossa sabedoria, força e outros dons naturais — ao Senhor para Ele usar.
Isto fica claro a partir do v. 13. Nota-se, naquele ver­sículo, que a condição é "como ressurretos dentre os mortos". Isto define o ponto em que começa a consagra­ção. Paulo diz: "Oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os mortos". O que aqui se refere não é a consa­gração de qualquer coisa pertencente à velha criação, mas somente daquilo que passou através da morte para a ressurreição. A atitude de "oferecer", de que se fala aqui, é o resultado de eu saber que o meu velho homem foi crucificado. Saber, considerar-se, oferecer-se a Deus: esta é a ordem divina.
Quando eu realmente sei que fui crucificado com Ele, então espontaneamente considero-me morto (vv. 6 e 11) e quando sei que ressuscitei com Ele de entre os mortos, então, considero-me "vivo para Deus em Cristo Jesus" (vv. 9 e 11), pois tanto o aspecto da Cruz denominado "morte", como o denominado "ressurreição" têm que ser aceitos pela fé. Quando chego a este ponto, segue-se que me dou a Ele. Na ressurreição, Ele é a fonte da mi­nha vida — realmente Ele é a minha vida; de modo que não posso deixar de oferecer tudo a Ele, pois tudo é dEle e não meu. Mas, sem passar pela morte, nada tenho para consagrar, nada há de aceitável a Deus, pois já con­denou, na Cruz, tudo quanto é da velha criação. A morte acabou com tudo o que não pode ser consagrado a Ele, e somente a ressurreição torna possível qualquer consagra­ção. Apresentar-me a Deus significa que, agora e daqui em diante, considero a minha vida como pertencente ao Senhor.

O terceiro passo: "Oferecei-vos..."

Observemos que este "apresentar-se" se refere aos membros do meu corpo — aquele corpo que, como já vimos, está agora desempregado em relação ao pecado. "Oferecei-vos... e os vossos membros" (Rm 6.13,19). Deus quer que eu considere agora todos os meus mem­bros, todas as minhas faculdades, como pertencendo-Lhe inteiramente.
É uma coisa grandiosa quando descubro que não me pertenço mais, mas que sou dEle. Se os dez cruzeiros no meu bolso me pertencem, tenho plena autoridade sobre eles. Mas se eles pertencem a outra pessoa, que os con­fiou a mim, não posso comprar com eles o que quiser, nem ouso perdê-los. A vida cristã real começa com o co­nhecimento desta verdade. Quantos de nós sabemos que, porque Cristo ressuscitou, estamos "vivos para Deus" e não para nós próprios? Quantos não se atrevem a usar o seu tempo, ou dinheiro ou talento segundo sua própria vontade, porque compreendem que eles são do Senhor e não de si mesmos? Quantos de nós temos um senti­mento tão forte de que pertencemos a outro, que não ousamos desperdiçar um só cruzeiro do nosso dinheiro ou uma hora do nosso tempo, ou qualquer dos nossos poderes mentais ou físicos?
Certa ocasião, um irmão chinês viajava de trem, ha­vendo no vagão onde se encontrava três pessoas não crentes que queriam jogar baralho para passar o tempo. Faltando um quarto parceiro para completar o jogo, convidaram este irmão a fazer parte da partida. "Lamen­to decepcioná-los", disse ele, "mas não posso participar do jogo, porque não trouxe comigo as minhas mãos". Atônitos, olharam para ele e disseram: "Que é que você quer dizer?". "Este par de mãos não me pertence" — dis­se ele, passando então a explicar a transferência de pro­priedade que tivera lugar na sua vida. Aquele irmão con­siderava os membros do seu corpo como pertencentes inteiramente ao Senhor. A verdadeira santidade é esta. Paulo diz: "Oferecei agora os vossos membros para servi­rem à justiça para a santificação" (Rm 6.19). Façamos disto um ato definido. "Oferecei-vos a Deus".

Separados para o Senhor

O que é a santidade? Muitas pessoas pensam que nos tornamos santos pela extirpação de alguma coisa má den­tro de nós. Não, tornamo-nos santos desde que sejamos separados para Deus. Nos tempos do Antigo Testamento o homem escolhido para ser inteiramente de Deus era publicamente ungido com azeite, e dizia-se então estar "santificado". Daí em diante era considerado como pos­to à parte para Deus. De igual modo, os animais e até as coisas - um cordeiro ou o ouro do templo — podiam ser santificados, não pela extirpação de alguma coisa má neles, mas sendo assim reservado exclusivamente para o Senhor. "A santidade", no sentido hebraico, significava, pois, "posto à parte", e toda verdadeira santidade é santidade ao Senhor (Êx 28.36). Dou-me inteiramente a Cristo: isto é santidade.
Oferecer-me a Deus implica o reconhecimento de que sou inteiramente dEle. Este ato de me dar ao Senhor é uma coisa definida, tão definida como o reconhecimento. Deve haver um dia, na minha vida, em que passo das mi­nhas próprias mãos para as dEle, e desse dia em diante pertenço-Lhe e não mais a mim mesmo. Isso não signifi­ca que eu me consagro para ser pregador ou missionário. Infelizmente, muitos são missionários, não porque, no sentido que estamos considerando, verdadeiramente se tenham consagrado a Deus, mas porque não se consa­graram a Ele. "Consagraram", como diriam, algo inteira­mente diferente: as suas faculdades naturais, não crucifi­cadas, para realizar o Seu trabalho; esta, porém, não é a verdadeira consagração. Então a que devemos nós ser consagrados? Não ao trabalho cristão, e, sim, à vontade de Deus para ser e fazer o que Ele desejar.
Davi tinha muitos homens poderosos. Alguns eram generais e outros, porteiros, conforme o Rei lhes designa­va as suas tarefas. Devemos estar prontos a ser quer gene­rais, quer porteiros, designados às nossas responsabilida­des exatamente como Deus quer e não como nós esco­lhemos. Se você é crente, então Deus já tem um caminho preparado para você — uma "carreira" como disse Paulo em II Tm 4.7. Não só a vereda de Paulo como também a carreira de todo crente foi claramente traçada por Deus, e é da máxima importância que cada um conheça e ande no caminho designado por Deus. "Senhor, dou-me a Ti com este desejo somente, conhecer e andar no caminho que Tu me ordenaste". Essa é a verdadeira entrega. Se no fim da vida pudermos dizer como Paulo: "Acabei a carreira", então seremos verdadeiramente abençoados. Não há nada mais trágico do que chegar ao fim da vida e sabermos que a passamos andando pelo caminho errado. Temos apenas uma vida para viver aqui e somos livres para fazer com ela o que nos agradar, mas, se buscarmos o nosso próprio prazer na vida, nunca glorificaremos a Deus. Ouvi certa vez um crente devoto dizer: "Nada quero para mim; quero tudo para Deus". Você deseja alguma coisa separadamente de Deus, ou todo o seu de­sejo se centraliza na vontade dEle? Pode verdadeiramen­te dizer que a vontade de Deus é "boa e agradável e per­feita" para você? (Rm 12.2).
São as nossas vontades que estão em causa aqui. Aque­la minha forte e dogmática vontade própria tem que ir à Cruz, e eu devo me dar inteiramente ao Senhor. Não podemos esperar que um alfaiate nos faça um terno se não lhe dermos o tecido, nem que um construtor edifique uma casa quando não pusermos ao seu dispor o material necessário; e, da mesma forma, não podemos esperar que o Senhor viva a Sua vida em nós, se não Lhe dermos as nossas vidas para que Ele manifeste nelas a Sua vida. Sem reservas, sem controvérsia, devemos dar-nos a Ele, para fazer conosco o que Lhe agradar. "Oferecei-vos a Deus" (Rm6.13).

Servo ou escravo?

Se nos dermos a Deus, sem reservas, muitos ajusta­mentos talvez sejam necessários: na família, nos negócios, na vida da Igreja, ou em nossas opiniões pessoais. Deus não deixará sobrar nada de nós mesmos. O Seu dedo to­cará, uma por uma, todas as coisas que não são dEle, e Ele dirá: "Isto tem que desaparecer". Você está pronto? É loucura resistir a Deus, e é sempre prudente e sábio submeter-nos a Ele. Admitamos que muitos de nós ainda temos controvérsia com o Senhor. Ele deseja uma coisa da nossa parte, enquanto nós desejamos outra. Não ousa­mos considerar muitas coisas, nem orar a respeito delas, nem mesmo pensar nelas, por medo de perdermos a nos­sa paz. Podemos fugir assim do problema, mas isso nos colocaria fora da vontade de Deus. É sempre fácil nos afastarmos da Sua vontade, mas é uma bênção nos entregarmos a Ele e deixá-Lo realizar em nós o Seu propósito.
Como é bom ter a consciência de que pertencemos ao Senhor e de que não somos de nós mesmos! Não há coisa alguma mais preciosa no mundo. É isso que traz a consciência da Sua presença contínua, e a razão é óbvia.
Eu devo ter o sentimento de que Deus me possui antes de poder ter o sentimento da Sua presença em mim. Desde que a Sua soberania seja estabelecida, então não ouso fazer coisa alguma no meu próprio interesse, pois sou Sua propriedade exclusiva. "Não sabeis que daquele a quem vos ofereceis como servos para obediência sois servos? " (Rm 6.16). A palavra aqui traduzida por "ser­vo", significa realmente escravo. Esta palavra é usada várias vezes na segunda metade de Romanos 6. Qual é a diferença entre um servo e um escravo? Um servo pode servir o outra pessoa mas não se torna propriedade sua. Se gostar do seu senhor, pode servi-lo, mas se não gostar dele, po­de notificá-lo que quer deixar o serviço, e buscar outro senhor. O mesmo não acontece com o escravo. Ele não é © apenas empregado de outra pessoa, mas também sua pos­sessão. Como me tornei eu escravo do Senhor? Ele, por Seu lado, comprou-me, e eu, por meu lado, ofereci-me a Ele. Por direito de redenção, sou propriedade de Deus. Mas, para que eu seja Seu escravo devo voluntariamente me dar a Ele, pois Ele nunca me obrigará a fazê-lo. O problema de muitos cristãos hoje é que têm idéia insuficiente quanto ao que Deus pede deles. Quão facilmente dizem: "Senhor, estou pronto para tudo". Você sabe o que Deus pede da sua vida? Há idéias acalentadas, vontades fortes, relações preciosas, trabalhos predi­letos, que têm que desaparecer da nossa vida; de modo que não devemos nos oferecer a Deus antes de estarmos prontos a isto. Deus nos levará a sério.
Quando o rapaz galileu trouxe o pão ao Senhor, o que fez Ele? Quebrou o pão. Deus sempre quebra aquilo que Lhe é oferecido, mas após quebrá-lo, abençoa-o e usa-o para suprir as necessidade dos outros. Após nos darmos ao Senhor, Ele começa a quebrar o que Lhe foi oferecido. Tudo parece ir mal conosco, e começamos a protestar e a nos queixar dos caminhos de Deus. Mas parar neste ponto equivale a ser um vaso quebrado — sem préstimo para o mundo, porque fomos demasiado longe para que tenhamos utilidade para o mundo, e sem prés­timo para Deus, porque não fomos suficientemente lon­ge para que Ele pudesse usar-nos. Ficamos desengrenados com o mundo e temos uma controvérsia com Deus. Esta é a tragédia de muitos cristãos.
A minha entrega ao Senhor deve ser um ato inicial e fundamental. Depois, dia a dia, devo prosseguir, dando-me a Ele, sem me queixar do uso que Ele faz de mim, mas aceitando, com grato louvor, mesmo aquilo contra c o qual a carne se revolta.
Sou do Senhor e agora não mais me considero pro­priedade minha, mas reconheço em tudo a Sua soberania e autoridade. Esta é a atitude que Deus requer, e mantê-la é verdadeira consagração. Não me consagro pa­ra ser missionário ou pregador; consagro-me a Deus para fazer a Sua vontade, onde estiver, quer seja na escola, no escritório, na oficina ou na cozinha, considerando que tudo o que Ele ordena é o melhor para mim, pois so­mente o que é bom pode advir para aqueles que são intei­ramente Seus. Permita Deus que estejamos sempre possuídos da consciência de que não somos de nós mesmos!


7

O propósito eterno

Já falamos da necessidade da revelação, da fé e da consagração para vivermos a vida cristã normal, mas nunca entenderemos claramente por que são necessárias, se não tivermos em mente o alvo que Deus tem em vista. Qual é o grande alvo divino, o propósito de Deus na criação e na redenção? Pode se resumir em duas frases, uma de cada seção de Romanos já mencionada. É: "a glória de Deus" (Rm 3.23), e "a glória dos filhos de Deus" (Rm 8.21).
Em Rm 3.23, lemos: "Todos pecaram e carecem da t glória de Deus". O propósito de Deus para o homem era a glória, mas o pecado frustrou esse propósito, fazendo com que o homem se desviasse deste alvo da glória de Deus. Quando pensamos no pecado, instintivamente pensamos no julgamento que ele acarreta; invariavelmen­te associamo-lo com a condenação e o Inferno. O pensamento do homem é sempre a respeito da punição que lhe sobrevirá se pecar, mas o pensamento de Deus gira em torno da glória que o homem perde se pecar. O resultado do pecado é que perdemos o direito à glória de Deus; o resultado da redenção é que somos qualificados de novo para a glória. O propósito de Deus na redenção e é glória, glória, glória.

Primogênito entre muitos irmãos

Esta consideração nos leva adiante, para o capítulo 8 de Romanos, onde o tema se desenvolve nos vv. 16 a 18, e de novo nos vv. 29 e 30. Paulo diz: "Somos filhos de Deus. E, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofrermos, para que também com ele sejamos glorificados. Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não são para comparar com a glória por £ vir a ser revelada em nós" (Rm 8.16-18); e ainda, "Por­quanto aos que de antemão conheceu, também os pre­destinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou" (Rm 8.29,30).
Qual era o objetivo de Deus? Era que o Seu Filho Je­sus Cristo pudesse ser o primogênito entre muitos irmãos que seriam todos transformados à Sua imagem. Como realizou Deus esse objetivo? "Aos que justificou, a esses também glorificou". Então, o propósito de Deus na criação e na redenção foi fazer de Cristo o primogênito entre muitos filhos glorificados.
Em João 1.14, aprendemos que o Senhor Jesus era o "unigênito Filho de Deus: "E o Verbo se fez carne e ha­bitou entre nós, e vimos a Sua glória, glória como do unigênito do Pai". Isto significa que Deus não tinha outro filho senão Este. Ele estava com o Pai desde toda a eter­nidade. Mas aprendemos que Deus não Se satisfazia em que Cristo permanecesse como o Filho Unigênito. Desejava também que Ele Se tornasse o Seu primogênito. Como podia um filho unigênito vir a ser o primogênito?
E tendo o pai, mais filhos; o primeiro filho que você tiver, será seu unigênito, mas se tiver outros, este se torna o primogênito.
O propósito divino na criação e na redenção foi que Deus tivesse muitos filhos. Ele nos desejava, e não Se satisfazia sem nós. Há algum tempo, visitei o Sr. George Cutting, autor do famoso folheto "Segurança, Certeza e Gozo". Quando fui levado à presença deste velho crente, de noventa e três anos, ele tomou a minha mão nas suas, e, de maneira calma e ponderada, disse: "Irmão, sabe, eu não posso passar sem Ele, e, sabe, Ele não pode passar sem mim". Embora estivesse com ele por mais de uma hora, a sua idade avançada e a sua fraqueza física tornaram impossível manter qualquer conversa, mas o que fi­cou gravado na minha memória, desta entrevista, foi a sua freqüente repetição destas duas frases: "Irmão, sabe, eu não posso passar sem Ele, e, sabe, Ele não pode passar sem mim".
Ao ler a história do filho pródigo, muitas pessoas se impressionam com as tribulações que lhe sobrevieram, pensando no que ele passou de desagradável. Mas não é e essa a lição da parábola, cujo coração é: "Meu filho esta­va perdido e foi achado". A questão não é o que o filho sofre, mas o que o pai perde. É Ele o sofredor; é Ele quem perde. Uma ovelha se perde — de quem é a perda? Do pastor. Perde-se uma moeda — de quem é a perda? Da mulher. Perde-se um filho — de quem é a perda? Do pai. É esta a lição de Lucas capítulo 15.
O Senhor Jesus era o Filho Unigênito: não tinha irmãos. O Pai, porém, enviou o Filho, a fim de que o Unigênito pudesse também ser o Primogênito, e o Filho amado tivesse muitos irmãos. Nisto reside toda a histó­ria da Encarnação e da Cruz; e temos aqui, finalmente, o cumprimento do propósito de Deus: "Conduzindo « muitos filhos à glória" (Hb 2.10).
Lemos em Rm 8.29: "muitos irmãos", e em Hb 10.10: "muitos filhos". Do ponto de vista do Senhor Jesus Cristo, trata-se de "irmãos"; do ponto de vista de Deus Pai, trata-se de "filhos". Ambas as palavras, neste contexto, expressam a idéia de maturidade. Deus procura filhos adultos, e mais do que isso, não deseja que vivam num celeiro, numa garagem ou no campo: quer levá-los para o a Seu lar. Deseja que compartilhem da Sua glória. É esta a explicação de Rm 8.30: "Aos que justificou, a estes também glorificou". A filiação — a expressão plena do Seu Filho — é o propósito de Deus nos "muitos filhos". Como poderia Ele realizar isto? Justificando-os e depois, glorificando-os. Deus não Se deterá aquém daquele alvo.
Ele Se propõe a ter filhos com Ele na glória, filhos perfeitos e responsáveis. Providenciou para que todo o Céu fosse habitado com filhos glorificados. Foi este o Seu propósito na redenção.

O grão de trigo

Como foi efetuada a obra de Deus em tornar Seu Fi­lho Unigênito em Primogênito? A explicação se acha em João 12.24: "Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo em terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto". Este grão era o Se­nhor Jesus, o único que Deus tinha no universo; não ti­nha segundo grão. Deus colocou este único grão na terra, onde morreu, e, na ressurreição, o grão unigênito se transformou em grão primogênito, porque dele se derivaram muitos grãos.
Em relação à Sua divindade, o Senhor Jesus permanece único como "unigênito Filho de Deus". Todavia, há um sentido em que, da ressurreição em diante, e por to­da a eternidade, é também o primogênito, e a Sua vida, a partir de então, se acha em muitos irmãos. Assim, nós, que somos nascidos do Espírito, somos feitos "co-participantes da natureza divina" (II Pe 1.4), não por nós mesmos, e, sim, em dependência de Deus e por virtude e de estarmos "em Cristo". Recebemos "o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso Espírito que somos filhos de Deus" (Rm 8.15, 16). Foi por meio da Encarnação e da Cruz que o Senhor Jesus o tornou possível. Nisto se satisfez o coração de Deus, o Pai, porque pela obediência do Filho até à morte, alcançou os Seus muitos filhos.
O primeiro e o vigésimo capítulos de João são muito preciosos a este respeito. No princípio do seu Evangelho, João nos diz que Jesus era o "unigênito Filho do Pai". No fim do Evangelho, diz que o Senhor Jesus, depois de ter morrido e ressuscitado, disse a Maria Madalena: "Vai ter com meus irmãos, e dize-lhes que Eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus" (João 20.17). Até aqui, neste Evangelho, o Senhor falou muitas vezes de "o Pai" ou de "meu Pai". Agora, na ressurreição, acrescenta: "...e vosso Pai". É o Filho mais velho, o Pri­mogênito, que fala. Pela Sua morte e ressurreição, muitos irmãos foram trazidos para a família de Deus, e, por­tanto, no mesmo versículo, Ele os chama: "Meus irmãos". "Ele não se envergonha de lhes chamar irmãos" (Hb. 2.11).

A escolha que Adão tinha que fazer

Deus plantou grande número de árvores no Jardim no Éden, mas, "no meio do jardim" — isto é, num lu­gar de especial proeminência, plantou duas árvores: a árvore da vida, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Adão foi criado inocente: não tinha o conheci­mento do bem, nem do mal. E Deus o colocou no Jar­dim, dizendo com efeito: "Ora, o Jardim está cheio de árvores repletas de frutos, e podes comer livremente do fruto de todas as árvores, mas, no meio do Jardim, há uma árvore chamada 'a árvore do conhecimento do bem e do mal' — não deves comer dela porque, no dia em que o fizeres, certamente morrerás. Mas, lem­bra-te, o nome da outra árvore, ao pé dessa, é 'árvore da Vida'."
Qual é, pois, o significado destas duas árvores? Adão, por assim dizer, foi criado moralmente neutro — nem pecador nem santo, mas inocente — e Deus colocou estas duas árvores no Jardim para que ele pudesse pôr em prática a faculdade de livre escolha de que era dota­do. Podia escolher a árvore da vida, ou escolher a árvore do conhecimento do bem e do mal.
Ora, o conhecimento do bem e do mal, embora a Adão tivesse sido proibido, não é mau em si mesmo. Sem ele, Adão está limitado e não pode, por si mesmo, decidir em questões de ordem moral. O julgamento do que é certo e bom não lhe pertence, e, sim, a Deus, e o único recurso de Adão, quando tem que encarar qualquer problema, é remetê-lo a Deus. Assim, há no Jardim uma vida que depende totalmente de Deus. Estas duas árvores representam, portanto, dois princípios profundos; simbolizam dois planos de vida, o divino e o humano. A "árvore da vida" é o próprio Deus, porque Deus é a vida, a mais elevada expressão da vida, bem como a fonte e o alvo da vida. O que representa o fruto? É nosso Senhor Jesus Cristo. Não podemos comer a árvore, mas podemos comer o seu fruto. Ninguém é capaz de receber Deus, como Deus, mas podemos receber o Senhor Jesus Cristo. O fruto é a parte comestível, a parte da árvore que se pode receber. Podemos assim dizer, com a devida reverência, que o Senhor Jesus Cristo é realmente Deus, em forma recebível: Deus, em Cristo, po­de ser recebido por nós.
Se Adão tomasse da árvore da vida, participaria da vida de Deus e assim se tornaria um "filho" de Deus, no sentido de ter em si mesmo vida derivada de Deus.
Teríamos então a vida de Deus em união com o ho­mem: uma raça de homens tendo em si a vida de Deus e vivendo em constante dependência de Deus para a manifestação dessa vida. Se, por outro lado, Adão se voltasse na direção contrária e tomasse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, desenvolveria então a sua própria humanidade, de forma natural, e separadamente de Deus. Alcançando um elevado grau de façanhas e conhecimentos pelas suas conquistas e aquisições como ser auto-suficiente, teria em si mesmo o poder de formar opiniões independentemente de Deus, não teria, porém, a vida divina em si mesmo. Era, portanto, essa a alternativa que estava perante ele. Escolhendo o caminho do Espírito, o caminho da obediência, poderia tornar-se um "filho" de Deus, de­pendendo de Deus para a manifestação da sua vida ou, seguindo o curso natural, ele podia, por assim dizer, dar o toque final em si mesmo, tornando-se um ser auto-dependente, julgando e agindo separadamente de Deus. A história da humanidade é o resultado da escolha que Adão fez.

A escolha de Adão, a razão da Cruz

Adão escolheu a árvore do conhecimento do bem e do mal, tomando assim uma posição de independência. Ficou sendo o que até hoje é o homem (aos seus próprios olhos): homem "plenamente desenvolvido" que pode comandar o conhecimento, decidir por si mesmo, prosseguir ou deter-se. Desde então, tinha "entendimento" (Gn 3.6). Mas, a conseqüência que daí resultou, envol­vera cumplicidade com Satanás e o colocara sob o juízo de Deus. Foi por isso que o acesso à árvore da vida lhe teve de ser, daí em diante, vedado.
Dois planos de vida foram colocados perante Adão: o da vida divina, em dependência de Deus, e o da vida hu­mana, com os seus recursos "independentes". Foi peca­minosa a escolha que Adão fez, do último, porque assim se tornou aliado de Satanás para frustrar o eterno propó­sito de Deus. Escolheu o desenvolvimento da sua própria humanidade, querendo se tornar um homem melhor ou talvez perfeito, segundo o seu próprio padrão — porém, separado de Deus. O resultado, no entanto, foi a morte, porque ele não tinha em si mesmo a vida divina impres­cindível para realizar em si o propósito de Deus, e aca­bou escolhendo ser um agente "independente", do Ini­migo. Assim, em Adão, todos nos tornamos pecadores, dominados por Satanás, sujeitos à lei do pecado e da morte e merecendo a ira de Deus. Vemos, assim, a razão divina da morte e da ressurreição do Senhor Jesus. Vemos, também, a razão divina da verdadeira consagração — para nos considerarmos mortos para o pecado mas vivos para Deus, em Cristo Jesus, e para nos apresentarmos a Deus como vivos dentre os mortos. Todos devemos ir à Cruz, porque o que está em nós, por natureza, é uma vida bem nossa, sujeita à lei do pecado. Adão escolheu uma vida própria ao invés da vida divina; assim, Deus teve que pôr termo a tudo quanto era de Adão. O nosso "velho homem" foi crucificado.
Deus incluiu-nos todos em Cristo e crucificou-O, como o último Adão, aniquilando assim tudo o que pertence a Adão.
Depois, Cristo ressuscitou em nova forma; ainda com um Corpo mas "no espírito"; não mais "na carne". "O último Adão, porém, é espírito vivificante" (I Co 15.45). O Senhor Jesus agora tem um Corpo ressurreto, espiri­tual, glorioso e, desde que não está mais na carne, pode agora ser recebido por todos. "Quem de mim se alimenta, por mim viverá", disse Jesus (João 6.57). Os judeus acha­ram revoltante a idéia de comer a Sua carne e beber o Seu sangue, mas, evidentemente, não podiam recebê-Lo então, porque Ele estava, literalmente, na carne. Agora que Ele está no Espírito, cada um de nós pode recebê-Lo, e é participando da Sua vida ressurreta que somos constituídos filhos de Deus. "A todos quan­tos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus... os quais nasceram... de Deus" (João 1.12,13). Deus não está empenhado em reformar a nossa vida; o Seu pensamento não consiste em trazê-la a certo grau de aperfeiçoamento, porque a nossa vida situa-se num plano essencialmente errado. Naquele plano, Ele não po­de agora levar o homem à glória. Tem que criar um novo homem, nascido de Deus, nascido de novo. A regeneração e a justificação caminham juntas.

Aquele que tem o Filho tem a vida

Há vários planos de vida. A vida humana situa-se entre a vida dos animais inferiores e a vida de Deus. Não podemos lançar uma ponte sobre o golfo que nos distan­cia do plano inferior ou do plano superior, e a separação que há entre a nossa vida e a de Deus é infinitamente superior à que existe entre a nossa vida e a dos animais. Os seus filhos nasceram na sua família e recebem seu no­me porque você lhes comunicou a sua própria vida. Quanto ao seu cão, talvez seja inteligente, bem compor­tado, um cão notável, mas nunca poderia ocupar a posi­ção de ser seu filho. A questão não é: "Trata-se de um cão bom ou mau?" mas, simplesmente: "É um cão!" Não é por ser mau que fica desqualificado para ser filho: é simplesmente por ser cão. O mesmo princípio se apli­ca às relações entre o homem e Deus. A questão não é você é mais ou menos bom ou mau, mas, simplesmente: "É homem!" Se a sua vida está num plano inferior ao da vida de Deus, então você não pode pertencer à família divina. A nossa única esperança, como homens, está em receber o Filho de Deus, e, quando o fazemos, a Sua vida em nós constituir-nos-á filhos de Deus.
O que nós hoje possuímos em Cristo é mais do que Adão perdeu. Adão era apenas um homem desenvolvido. Permaneceu naquele plano e nunca possuiu a vida de Deus. Mas nós, que recebemos o Filho de Deus, recebemos não só o perdão dos pecados, mas também recebemos a vida divina que estava representada no Jardim pela árvore da vida. Pelo novo nascimento, recebemos algo que Adão nunca tivera e não chegara a alcançar.

Todos vêm de um só

Deus deseja filhos que sejam co-herdeiros com Cristo, na glória. Este é o Seu alvo, mas como pode Ele realizá-lo? Voltemos agora a Hb 2.10,11: "Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse por meio de sofrimento o Autor da salvação deles. Pois, tanto o que santifica, como os que são santificados, todos vêm de um só. Por isso é que ele não se envergonha de lhes chamar irmãos, dizendo: "A meus irmãos declararei o teu nome, cantar-lhe-ei louvores no meio da congregação".
Mencionam-se aqui duas entidades: "muitos filhos" e "o Autor da salvação deles", ou, noutras palavras, "o que santifica" e "os que são santificados". Mas, diz-se que estas duas entidades "vêm de um só". O Senhor Je­sus, como homem, derivou a Sua vida de Deus e (noutro sentido, mas igualmente verdadeiro) derivamos a nossa vida de Deus. Ele foi "gerado... do Espírito Santo" (Mt " 1.20), e nós fomos "nascidos do Espírito", "nascidos... de Deus" (João 3.5; 1.13). Assim, diz Deus, somos todos de Um. "De", no Grego, significa "para fora de". O Fi­lho primogênito e os muitos filhos são todos, embora em sentidos diferentes, tirados "para fora de" a única Fonte da vida. Temos hoje a vida que Deus tem no Céu, porque Ele a transmitiu a nós aqui na terra. Este é o precioso "dom de Deus" (Rm 6.23).
É por essa razão que podemos viver uma vida de santi­dade, porque não se trata de a nossa vida ter sido modifi­cada, e sim, de a vida de Deus ter sido implantada em nós.
Já notou que, nesta consideração do propósito eterno, toda a questão do pecado deixa, finalmente, de existir? O pecado entrou com Adão e mesmo quando ele for re­solvido, como tem de sê-lo, apenas somos levados à posi­ção em que Adão se encontrou. Mas, relacionando-nos de novo com o propósito divino — restaurando-nos o acesso à árvore da vida — a redenção nos deu muito mais do que Adão jamais teve. Fez-nos participantes da própria vida de Deus.


8

O Espírito Santo

Tendo falado do eterno propósito de Deus como mo­tivo e explicação de tudo que Ele fez a nosso respeito, e antes de voltarmos ao estudo das fases da vida cristã apresentadas em Romanos, devemos considerar algo que forma a base e o poder vitalizante da nossa vida cristã eficaz no serviço: a presença e o ministério pessoal do Espírito Santo de Deus.
Aqui, também, tomaremos como ponto de partida um versículo de cada uma das nossas seções de Roma­nos: "O amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi outorgado" (Rm 5.5). "Se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele" (Rm 8.9).
Deus não concede arbitrariamente os Seus dons: são dados livremente a todos, mas em base definida. Real­mente, Deus nos tem "abençoado com toda sorte de bên­ção espiritual nas regiões celestiais em Cristo" (Ef 1.3), mas para que aquelas bênçãos que nos pertencem em Cristo se tornem nossas em experiências, temos que saber a base e princípio delas.
Ao considerar o dom do Espírito, servir-nos-á de auxí­lio pensar nele em dois aspectos, como o Espírito derramado e o Espírito que habita interiormente, e o nosso propósito agora é compreender em que base este duplo dom do Espírito Santo se torna nosso. Não duvido de ser correto distinguir entre as manifestações exteriores e interiores da Sua operação e de que um exame da matéria nos levará à conclusão de ser mais preciosa a atividade interior do Espírito Santo. Isto não significa que Sua atividade exterior não seja também preciosa, pois Deus so­mente dá boas dádivas aos Seus filhos. Infelizmente, pou­ca importância damos aos nossos privilégios, por serem tão abundantes. Os santos do Antigo Testamento, que não foram tão favorecidos como nós, podiam apreciar, melhor do que nós, a preciosidade deste dom do Espíri­to derramado. Em seus dias era um dom concedido apenas a uns poucos escolhidos — principalmente sacer­dotes, juízes e profetas — enquanto que hoje é a porção de cada filho de Deus. Nós, que somos pessoas sem valor especial, podemos ter, repousando sobre nós, o mesmo Espírito que esteve sobre Moisés, o amigo de Deus, sobre Davi, o rei amado, e sobre Elias, o profeta poderoso. Recebendo o dom do Espírito Santo derramado, juntamo-nos às fileiras dos servos escolhidos de Deus da Dispensação do Antigo Testamento. Uma vez percebido o valor deste dom de Deus e o quanto dele precisamos, perguntaremos imediatamente: como posso eu receber o Espírito Santo para me equipar com dons espirituais, dando-me poder para o serviço? Em que condições o Espírito Santo é dado?

O Espírito derramado

Examinemos, primeiramente, At 2.32-36: "A este Je­sus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemu­nhas. Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis. Porque Davi não subiu aos céus, mas ele mesmo declara: Disse o Senhor ao meu Senhor; Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés. Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo".
No v.33, Pedro declara que o Senhor Jesus foi exalta­do "à destra de Deus". Qual foi o resultado? Ele recebeu do Pai a promessa do Espírito Santo"... e o que se seguiu? Pentecostes! O resultado da Sua exaltação foi — "isto que vedes e ouvis".
Em que condições, pois, o Espírito Santo foi primeiro sobre o Seu povo? Foi quando da Sua exaltação ao Céu. Esta passagem deixa absolutamente claro que o Espírito foi derramado porque o Senhor Jesus foi exaltado. O der­ramamento do Espírito não tem relação com os méritos que você ou eu talvez tenhamos, e, sim, unicamente com os do Senhor Jesus. A questão do que nós somos não entra aqui em consideração, mas unicamente aquilo que Ele é. Ele foi glorificado; portanto, o Espírito é derramado.
Porque o Senhor Jesus morreu na Cruz, eu recebi o perdão dos meus pecados; porque o Senhor Jesus foi exaltado à mão direita do Pai, eu recebi o Espírito derra­mado. Tudo é por causa dEle; nada é por minha causa. A remissão dos pecados não se baseia no mérito humano, e, sim, na crucificação do Senhor; a regeneração se fun­damenta na ressurreição do Senhor; e o revestimento do Espírito Santo depende da exaltação do Senhor. O Espí­rito Santo não foi derramado sobre você ou sobre mim para provar quão grandes nós somos, mas para provar a grandeza do Filho de Deus.
No v.36, a palavra "pois", como de costume, se rela­ciona a uma declaração feita antes; neste caso, refere-se ao v. 33, em que Pedro se refere ao derramamento do Espírito sobre os discípulos, "isto que vedes e ouvis", passando então a dizer: "Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel, de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo". Noutras pala­vras, Pedro diz aos seus ouvintes: "Este derramamento do Espírito que vocês estão vendo e ouvindo com seus próprios olhos e ouvidos, comprova que Jesus Cristo, crucificado por vocês, é agora tanto Senhor como Cris­to". O Espírito Santo foi derramado, na Terra, para comprovar o que já acontecera no Céu — a exaltação de Jesus de Nazaré à destra de Deus. O propósito de Pentecostes é provar a Soberania de Jesus Cristo.
Havia um jovem chamado José, que era muito queri­do do seu pai. Certo dia, o pai recebeu a notícia da mor­te do filho e, durante anos, Jacó lamentou a perda de Jo­sé. Mas José não estava na sepultura; estava num lugar de glória e de poder. Depois de Jacó ter lamentado a morte de seu filho durante anos, foi-lhe subitamente revelado que José estava vivo e que se encontrava no Egito, ocu­pando posição de destaque. A princípio, Jacó não podia acreditar. Era demasiadamente bom para ser verdade, mas, finalmente, se deixou persuadir da veracidade da história da exaltação de José. Como chegou ele a tal con­vicção? Saiu de casa e viu os carros que José enviou do Egito ao seu encontro. Os carros tipificam o Espírito Santo enviado, tanto para ser a prova de que o Filho de Deus está na glória, como para nos levar para lá. Como sabemos que Jesus de Nazaré, que foi crucificado por homens ímpios há quase dois mil anos está agora à destra do Pai na glória? Como podemos saber com certeza que Ele é Senhor dos senhores e Rei dos reis? Podemos sabê-lo, sem qualquer dúvida, porque Ele derramou sobre nós o Seu Espírito. Aleluia! Jesus é Senhor! Jesus é Cristo! Jesus de Nazaré é não só Senhor como também Cristo.
A exaltação do Senhor Jesus é a condição prévia do derramamento do Espírito Santo. É então possível que o Senhor tenha sido glorificado sem que nós também re­cebêssemos o Espírito? Em que base recebemos o per­dão dos pecados? Foi porque oramos fervorosamente ou porque lemos a Bíblia de capa a capa, ou pela nossa freqüência regular na igreja? Foi por causa de qualquer dos nossos méritos? Não! Mil vezes não! Em quais con­dições, então, foram perdoados os nossos pecados? Hb 9.22 diz: "Sem derramamento de sangue não há remis­são". A única condição prévia do perdão é o derrama­mento de Sangue; e desde que o Sangue precioso foi derramado, os nossos pecados foram perdoados.
Ora, o princípio segundo o qual recebemos o revesti­mento do Espírito Santo é exatamente o mesmo: o Se­nhor foi crucificado e,portando,os nossos pecados foram perdoados; o Senhor foi glorificado e, portanto, o Espí­rito foi derramado sobre nós. É possível que o Filho de Deus tenha derramado o Seu Sangue sem que os seus pe­cados, querido filho de Deus, tenham sido perdoados? Nunca! E possível, então, que o Senhor Jesus tenha sido glorificado sem que você tenha recebido o Espírito? Nunca!
Voltemos à questão da justificação. Como fomos jus­tificados? Não por ter feito alguma coisa, mas por acei­tar que o Senhor já fez tudo. De igual modo, o revesti­mento do Espírito Santo entra na nossa experiência, não em virtude de fazermos alguma coisa por nós mesmos, mas como resultado de pormos a nossa fé no que o Se­nhor já fez.
Se nos faltar experiência, devemos pedir a Deus uma revelação do fato eterno do batismo no Espírito Santo c como um dom do Senhor Exaltado à Sua Igreja. Desde que percebamos isto, cessará o esforço e a oração dará lugar ao louvor. Foi uma revelação daquilo que o Senhor fez pelo mundo que pôs fim aos nossos esforços no sen­tido de nos assegurarmos do perdão dos pecados, e é uma revelação do que o Senhor fez pela Sua Igreja que porá termo aos nossos esforços no sentido de alcançar­mos o batismo no Espírito Santo. Concorremos com nossas próprias obras porque não vimos a obra de Cristo. Uma vez que a vejamos, porém, a fé brotará nos nossos corações e, na medida em que cremos, a experiência se segue.
Há algum tempo, um jovem que era crente havia ape­nas cinco semanas e que antigamente se opunha violenta­mente ao Evangelho, assistiu a uma série de reuniões em que preguei em Xangai. No fim de uma destas reuniões, em que falei nos moldes acima, foi para casa e começou a orar com fervor: "Senhor, eu quero o poder do Espíri­to Santo. Visto que Tu foste glorificado, não queres ago­ra derramar o Teu Espírito sobre mim? " Depois, corri­giu-se a si mesmo, e disse: "Oh, não Senhor, isto está tu­do errado", e começou a orar de novo: "Senhor Jesus, nós temos uma vida em comum, Tu e eu, e o Pai nos pro­meteu duas coisas — a glória para Ti e o Espírito para mim. Tu, Senhor, já recebeste a glória, portanto, é inad­missível pensar que eu não tenha recebido o Espírito. Senhor, eu louvo o Teu nome! Tu já recebeste a glória e eu já recebi o Espírito". Desde aquele dia em diante, estava sempre consciente do poder do Espírito sobre ele.
Mais uma vez, a fé é a chave. Assim como o perdão é questão de fé, assim também é o recebimento do Espírito Santo em nossa vida. Vendo Jesus no Calvário, sabemos que os nossos pecados estão perdoados; vendo Jesus entronizado, sabemos que o Espírito Santo foi derramado sobre nós. A base em que re­cebemos o revestimento do Espírito Santo não é a nossa oração, o nosso jejum, a nossa expectação, e, sim, a exaltação de Cristo. Os que ressaltam o tempo de "espera", realizando reuniões para tal fim, apenas nos induzem ao erro, porque o dom não é para uns poucos favorecidos, mas para todos, porque não nos é dado na base do que somos, mas devido ao que Cristo é. O Espírito foi derra­mado para provar a Sua bondade e a Sua grandeza, e não as nossas. Cristo foi crucificado e nós, portanto, fomos perdoados. Cristo foi glorificado e nós, portanto, fomos revestidos com o poder do Alto. É tudo por causa dEle.
Suponhamos que um descrente manifeste o desejo de ser salvo e que nós lhe explicamos o caminho da salva­ção e oramos com ele. Todavia, depois, ele ore desta for­ma: "Senhor Jesus, creio que Tu morreste por mim e que Tu podes apagar todos os meus pecados. Realmente creio que Tu me perdoarás". Sentiremos confiança em que tal homem já é salvo? Quando teremos certeza de que ele nasceu de novo? É quando diz: "Senhor, graças Te dou porque já perdoaste os meus pecados, já morreste por mim, portanto, já foram apagados os meus pecados".
Acreditamos que uma pessoa está salva quando a sua pe­tição se transforma em louvor. Quando cessa de pedir ao Senhor que lhe perdoe, e O louva porque Ele já o fez, visto que o Sangue do Cordeiro já foi derramado. Semelhantemente, é possível esperarmos durante anos sem nunca experimentar o poder do Espírito; quando, entretanto, cessamos de implorar ao Senhor para que derrame o Seu Espírito sobre nós e quando, ao in­vés disso, confiadamente O louvamos, porque o Espírito já foi derramado, visto que o Senhor Jesus já foi glo­rificado, acharemos o nosso problema resolvido. Graças a Deus! Nem um só dos Seus filhos necessita de agoni­zar, nem mesmo de esperar, para que o Espírito seja dado. Jesus não será feito Senhor, porque Ele já é Senhor. Portanto, eu não vou receber o Espírito, porque eu já O recebi. É tudo uma questão de fé, da fé que vem pela re­velação. Quando os nossos olhos são abertos para ver que o Espírito já foi derramado, porque Jesus já foi glorificado, então a oração dá lugar ao louvor nos nossos corações.
Todas as bênçãos espirituais e dons de Deus são dados livre e gratuitamente, mas há condições que tem de se cumpridas da nossa parte, como se vê claramente em At «2.38,39: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja batiza­do em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pe­cados, e recebereis o dom do Espírito Santo. Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos, e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor nosso Deus chamar".
Nesta passagem mencionam-se quatro assuntos: o Arrependimento, o Batismo, o Perdão e o Espírito Santo. As duas primeiras são condições, as duas últimas são dons. Quais são as condições a serem preenchidas para termos o perdão dos pecados? Segundo a Palavra de Deus, são duas: o Arrependimento e o Batismo.
A primeira condição é o arrependimento, que signifi­ca uma mudança de mente. Antes, considerava o pecado agradável, mas agora mudei de opinião; considerava o mundo um lugar atraente, mas agora sei melhor; achava coisa triste ser crente, mas agora penso de forma dife­rente; achava deliciosas certas coisas, agora penso que são vis; não reconhecia o valor de determinadas coisas, agora, considero-as imensamente preciosas. Isto é uma mudança de mente e é, portanto, o arrependimento. Ne­nhuma vida pode ser realmente transformada sem tal mudança de mente.
A segunda condição é o batismo. O batismo é uma expressão exterior da fé interior. Quando verdadeira­mente cri, no meu coração, que tinha morrido com Cris­to, que fora sepultado e ressuscitara com Ele, então pedi o batismo. Deste modo declarei publicamente o que creio no íntimo.
Estas são, pois, duas condições do perdão divinamente indicadas — o arrependimento, e a fé publicamente ma­nifestada. Você já se arrependeu? Já deu testemunho público da sua união com o Senhor? Recebeu, então, a remissão dos pecados e o dom do Espírito Santo? Afir­ma que recebeu apenas o primeiro dom e não o segundo? Mas, meu amigo, Deus lhe ofereceu duas coisas, caso você cumprisse duas obrigações. Por que tomou posse apenas de uma? O que vai fazer da segunda? Seja cumpriu as condições, tem direito aos dois dons e não apenas a um deles. Já tomou posse de um; por que não aceita o outro? Diga ao Senhor: "Senhor, cumpri as condições para rece­ber a remissão dos pecados e o dom do Espírito Santo, mas, nesciamente, apenas tomei posse do primeiro. Ago­ra venho receber o dom do Espírito Santo e Te louvo e dou graças por ele".

A diversidade da experiência

Mas, você perguntará: "Como saberei que o Espíri­to Santo veio sobre mim? " Não posso dizer-lhe como saberá, mas posso afirmar que saberá. Não nos foi dada qualquer descrição das sensações e emoções pessoais dos discípulos no Pentecoste, mas sabemos que os seus senti­mentos e o seu comportamento foram, de alguma forma, anormais, porque o povo, presenciando-os, disse que eles estavam embriagados. Quando o Espírito Santo cai so­bre o povo de Deus, há alguma coisa que o mundo não pode explicar. Resultarão manifestações sobrenaturais de algum gênero, mesmo que não seja mais do que uma sensação dominante da Presença Divina. Não podemos e não devemos estipular que forma tomarão tais expressões exteriores, em cada caso, mas uma coisa é certa, que cada um, sobre quem o Espírito Santo vier, terá consciência disso.
Quando o Espírito Santo veio sobre os discípulos, no Pentecostes, houve algo de extraordinário no seu com­portamento, e Pedro ofereceu uma explicação tirada da Palavra de Deus, a todos que o testemunharam. O seguin­te é um resumo do que Pedro disse: "Quando o Espírito Santo cai sobre os crentes, alguns profetizarão, outros sonharão sonhos e outros terão visões. Isto é aquilo que Deus declarou pelo profeta Joel". Mas, na referida passa­gem de Joel, 2.28,29, profecias, sonhos e visões são apre­sentados como acompanhantes do derramamento do Espírito Santo, e parece que estas provas faltaram no Dia de Pentecostes. Houve, porém, o vento impetuoso, e as línguas repartidas como que de fogo, e o falar em lín­guas, que a profecia de Joel não mencionou. O que que­ria dizer Pedro, ao citar o profeta, quando o que Joel mencionou faltava aos discípulos, e o que os discípulos experimentaram não foi mencionado por Joel?
Não nos esqueçamos que Pedro falava sob a direção do Espírito Santo. O Livro dos Atos foi escrito sob ins­piração do Espírito, e nem uma palavra foi usada ao acaso. Quando Pedro disse: "Mas o que ocorre é o que foi dito por intermédio do profeta Joel" (At 2.16), que­ria dizer que a experiência era da mesma ordem. O que o Espírito Santo ressalta por meio de Pedro é a diversidade das experiências. As evidências externas podem ser mui­tas e variadas, e temos que reconhecer que às vezes são estranhas; mas o Espírito é UM SÓ e Ele é Senhor (ver I Coríntios 12.4-6).
O que aconteceu ao Dr. Torrey, quando o Espírito Santo veio sobre ele, depois de ter servido durante anos como ministro do Evangelho? Eis como ele se expressa:
"Recordo-me do lugar exato onde estava ajoelhado, em oração, no meu escritório... Foi um momento de muito silêncio, um dos momentos de maior quietude que já conheci... então Deus disse-me, simplesmente, não numa voz audível, mas no meu coração: "É teu, agora vai e prega". Deus já dissera a mesma coisa em I João 5.14,15; mas, a essa altura, eu não conhecia a minha Bíblia como a conheço agora, por isso Ele teve compai­xão da minha ignorância e disse-a diretamente à minha alma. Fui e preguei, e, a partir daquele dia até hoje, te­nho sido um ministro novo... Algum tempo depois desta experiência (não me recordo exatamente quanto tempo depois) quando me encontrava sentado, certo dia, no meu quarto... subitamente... dei por mim gritando alto, de exultação (Não fui habituado a clamar alto e não te­nho um temperamento caracterizado para louvar a Deus em voz alta, mas agora o fiz como os metodistas que mais gritavam), "Glória a Deus, glória a Deus, glória a Deus", e não podia deter-me... Mas não foi então que fui batizado com o Espírito Santo. Fui batizado com o Espí­rito Santo quando (*) pela simples fé na Palavra de Deus".
As manifestações exteriores, no caso de Torrey, não foram as mesmas que encontramos descritas por Joel ou por Pedro, mas "o que ocorre é o que foi dito por inter­médio do profeta Joel". Não é um fac-símile e, contudo, é a mesma coisa.
E como se sentiu e agiu D. L. Moody quando o Espí­rito veio sobre ele?
"Clamava continuamente a Deus para que me enches­se do Seu Espírito. Certo dia, na cidade de Nova Iorque, — oh, que dia! — não posso descrevê-lo, raramente me refiro a ele; é uma experiência demasiado sagrada para se falar dela. Paulo teve uma experiência de que nunca fa­lou durante quatorze anos. Apenas posso dizer que Deus Se revelou a mim, e tive do Seu amor uma expe­riência tal que fui obrigado a pedir-Lhe que detivesse a Sua mão. Voltei a pregar. Os sermões não eram diferen­tes; não apresentei quaisquer verdades novas e, contudo, centenas converteram-se. Não queria voltar à posição em que me encontrava antes daquela bendita experiência, ainda que me dessem o mundo inteiro, este seria para mim como a poeira mais leve da balança".
As manifestações exteriores, que acompanharam a experiência de Moody, não conferiram exatamente com a descrição de Joel, de Pedro ou de Torrey. Mas quem pode duvidar de que "isto", que Moody experimentou, era "aquilo" que fora experimentado pelos discípulos no Pentecostes? Não era a mesma coisa, quanto à sua manifestação, na essência, porém, era a mesma coisa.
E qual foi a experiência do grande Charles Finney quando sobre ele veio o poder do Espírito Santo?
"Recebi um batismo poderoso no Espírito Santo, sem qualquer expectação prévia do que aconteceria, sem jamais ter pensado que haveria para mim tal coisa, sem qualquer recordação de já ter ouvido alguém falar de tal experiência; o Espírito Santo desceu sobre mim de tal maneira que parecia traspassar-me o corpo e a alma. Não há palavras que possam expressar o amor maravilhoso que foi derramado no meu coração. Chorei em voz alta, de alegria e amor''.
A experiência de Finney não foi idêntica à do Pentecostes, nem à da experiência de Torrey, nem da de Moody; mas "o que ocorre é o que foi dito".
Quando o Espírito Santo é derramado sobre o povo de Deus, as experiências variarão consideravelmente. Alguns receberão nova visão, outros conhecerão nova li­berdade em ganhar almas, outros proclamarão a Palavra de Deus com poder, e ainda outros serão cheios de ale­gria celestial e louvor transbordante. Cada ocorrência é outro exemplo do que "foi dito". Louvemos ao Senhor por toda experiência que se relaciona com a exaltação de Cristo e da qual pode- se dizer verdadeiramente que é mais uma evidência do que foi profetizado. Nada há de estereotipado a respeito das relações e ações de Deus com os Seus filhos. Portanto, não devemos, pelas nossas prevenções e preconceitos, fazer compartimentos estan­ques para a operação do Espírito Santo, quer nas nossas próprias vidas, quer nas vidas dos outros. Isto aplica-se igualmente àqueles que requerem alguma experiência, alguma manifestação particular, como "falar em línguas", como evidência de que o Espírito veio sobre eles, e tam­bém àqueles que negam que qualquer manifestação seja dada. Devemos deixar Deus trabalhar livremente, corno Ele quer, e dar a evidência à Sua obra, como Ele deseja. Ele é Senhor e não nos cabe a nós legislar por Ele.
Regozijemo-nos porque Jesus está no Trono e louvemo-Lo porque, desde que Ele está glorificado, o Espírito foi derramado sobre todos nós. À medida em que aceitar­mos a realidade divina, com toda a simplicidade da fé, com tal segurança a conheceremos na nossa própria ex­periência que ousaremos proclamar com confiança — "O que ocorre é o que foi dito... "

A habitação interior do Espírito

Tratemos agora do segundo aspecto do dom do Espí­rito Santo que, como veremos no próximo capítulo, constitui mais particularmente o assunto de Romanos 8. É o que já chamamos a habitação interior do Espírito. "Se de fato o Espírito de Deus habita em vós" (Rm 8.9). "Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos..." (Rm 8.11).
Assim como precisamos de receber da parte de Deus uma revelação para realmente conhecermos experimen­talmente o Espírito derramado, assim também acontece com a realidade da habitação interior do Espírito Santo. Quando vemos Cristo como Senhor, objetivamente -isto é, quando O vemos exaltado no Trono, no céu — en­tão experimentamos o poder do Espírito sobre nós. Quando vemos Cristo como Senhor, subjetivamente -isto é, como Soberano e Senhor efetivo nas nossas vidas - então conheceremos o poder do Espírito dentro de nós.
A revelação da habitação interior do Espírito foi o remédio que Paulo ofereceu aos cristãos de Corinto, para a sua falta de espiritualidade. É importante notar que os cristãos em Corinto se preocupavam com os sinais visí­veis do derramamento do Espírito Santo e que tiveram muitas experiências de "línguas" e de milagres, enquan­to que, ao mesmo tempo, as suas vidas estavam cheias de contradições e eram um opróbrio para o nome do Se­nhor. Tinham, de forma absolutamente evidente, recebi­do o Espírito Santo e, contudo, permaneciam espiritual­mente imaturos; e o remédio que Deus lhes ofereceu foi o mesmo que hoje oferece à Sua Igreja para o mesmo mister e o mesmo problema.
Na carta que Paulo lhes dirigiu, escreveu: "Não sabeis que sois o santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?" (I Co 3.16). Orou em prol de outros, para que o seu entendimento fosse iluminado: "...para que saibais" (Ef 1.18). O conhecimento dos fatos divi­nos era a necessidade dos cristãos de então, e não é me­nos a necessidade dos cristãos hoje. Necessitamos de que os olhos do nosso entendimento sejam abertos, para podermos saber que Deus, pelo Seu Espírito Santo, fez dos nossos corações a Sua morada. Deus está presente na Pessoa do Espírito, e Cristo também está presente na Pes­soa do Espírito. Assim, se o Espírito Santo habitar em nosso coração, teremos também o Pai e o Filho habitan­do em nós. Isto não é mera teoria ou doutrina, mas uma bênção na realidade. Talvez entendemos que o Espírito está realmente em nosso coração; entendemos, também, que Ele é uma Pessoa? Compreendemos que ter o Espí­rito dentro de nós é ter, em nós, o Deus vivo?
Para muitos cristãos, o Espírito Santo é completa­mente irreal. Consideram-No uma mera influência, ama influência para o bem, sem dúvida, mas apenas e unica­mente uma influência. No seu pensamento, tanto a cons­ciência como o Espírito estão mais ou menos identifica­dos como "alguma coisa" dentro deles, que os leva a re­conhecer quando são maus e que procura mostrar-lhes como serem bons. O problema dos cristãos em Corinto não era que lhes faltasse o Espírito, vivendo interiormen­te nas suas vidas, mas que lhes faltava o conhecimento da Sua presença. Não conseguiam entender a grandeza dAquele que viera para fazer a Sua morada nos seus co­rações, de modo que Paulo escreveu-lhes: "Não sabeis que sois o santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?" Sim, este era o remédio para a sua espiritualidade — conhecer, precisamente, Quem real­mente era Aquele que neles habitava.

O Tesouro do Vaso

Você sabe, meu amigo, que o Espírito que vive den­tro de você é o próprio Deus? Oxalá fossem abertos os nossos olhos para vermos a grandeza do Dom de Deus! Oxalá pudéssemos nós compreender a vastidão dos re­cursos ocultos nos nossos próprios corações! Eu podia clamar de alegria ao pensar: "O Espírito, que habita den­tro de mim, não é mera influência, e, sim, uma Pessoa vi­va, o próprio Deus. O infinito Deus está dentro do meu coração". Acho muito difícil comunicar a maravilha desta descoberta, que o Espírito Santo que habita no meu coração é uma Pessoa. Posso apenas repetir: "Ele é uma Pessoa!" E continuar repetindo: "Ele é uma Pessoa!"
Oh, amigo, de bom grado repetiria cem vezes: O Espírito de Deus, dentro de mim, é uma Pessoa. Eu sou apenas, um vaso de barro, mas, este vaso de barro, contém um tesouro de indescritível valor: o Senhor da glória.
Toda a ansiedade e a irritação dos filhos de Deus ter­minaria se os seus olhos fossem abertos para ver a gran­deza do tesouro contido nos seus corações. Você sabe que há, no seu próprio coração, recursos suficientes para satisfazer todas as necessidades de cada circunstância em que poderá jamais encontrar-se? Sabe que há aí poder suficiente para mover a cidade em que vive? Sabe que há poder suficiente para abalar o universo? Digo-lhe mais uma vez, com toda a reverência: você nasceu de novo do Espírito de Deus, e carrega Deus no coração.
Toda a leviandade dos filhos de Deus cessaria, tam­bém, se compreendessem a grandeza do tesouro que há no seu íntimo. Se você tiver apenas dez cruzeiros no bol­so, poderia passear alegre e despreocupadamente pela rua, e se perder o dinheiro, pouco importa, pois não está em causa grande quantia. Mas se você levar mil cruzeiros no bolso, a situação seria totalmente diferente, e todo o seu comportamento também seria diferente. Haverá gran­de alegria no seu coração, mas nem por isto passará descuidadosamente pela rua; a todo o momento afrouxará o passo para colocar a mão no bolso, apertando o seu novo tesouro com a mão, e depois continuará o seu ca­minho com alegre seriedade.
Nos tempos do Antigo Testamento, havia centenas de tendas no arraial dos israelitas, mas uma havia que era di­ferente de todas as demais. Nas tendas comuns, podia-se fazer o que se desejasse — comer ou jejuar, trabalhar ou descansar, estar alegre ou triste, barulhento ou silencioso. Aquela outra tenda, porém, impunha reverência e temor. Podia-se entrar ou sair das tendas comuns falando ruido­samente e rindo levianamente, mas, logo que se aproxi­masse daquela tenda especial, andava-se instintivamente com mais calma e solenidade, e, quando se estava diante dela, as pessoas curvavam a cabeça em silêncio solene. Ninguém podia tocar-lhe impunemente. Se um homem ou um animal ousasse fazê-lo, a conseqüência seria a morte. O que haveria de tão especial a respeito dela? Era o templo do Deus vivo. A sua aparência pouco tinha de es­pecial, pois exteriormente, era feita de materiais comuns, mas o grande Deus a escolhera para fazer dela a Sua mo­rada.
Você já entendeu o que aconteceu na sua conversão? Deus veio ao seu coração e fez dele o Seu templo. Nos dias do Antigo Testamento, Deus habitava num templo feito de pedras; hoje, Ele habita num templo composto de crentes vivos. Quando realmente vemos que Deus fez dos nossos corações o Seu lugar de habitação, que pro­funda reverência sobrevirá às nossas vidas! Cessarão toda a frivolidade e toda a leviandade, como também toda a complacência própria, quando soubermos que somos o templo de Deus e que o Espírito Santo de Deus habita em nós. Já se compenetrou da verdade de que aonde quer que vá, leva consigo o Espírito de Deus? Não leva unicamente a Bíblia consigo, nem mesmo um ensino muito bom a respeito de Deus, e, sim, leva o próprio Deus.
A razão por que muitos cristãos não experimentam o poder do Espírito, embora Ele realmente habite nos seus corações, é que lhes falta reverência. E falta-lhes reverên­cia porque não têm tido os seus olhos abertos para a rea­lidade da Sua presença que não entenderam. Por que é que alguns cristãos vivem vidas vitoriosas enquanto ou­tros vivem numa condição de constante derrota? A dife­rença não se explica, quer pela presença quer pela ausên­cia do Espírito (pois Ele habita no coração de cada filho de Deus), mas porque alguns reconhecem a Sua habita­ção interior e os outros não. A verdadeira revelação da habitação interior do Espírito, revolucionaria a vida de qualquer cristão.

A Soberania Absoluta de Cristo

"Acaso não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo" (I Co 6.19-20).
Uma vez feita a descoberta que somos o lugar onde Deus habita, devemos em seguida nos render totalmente a Ele. Quando percebemos que somos o templo de Deus, imediatamente reconhecemos que não somos de nós mes­mos. A consagração seguirá a revelação. A diferença entre cristãos vitoriosos e cristãos derrotados não está em terem alguns deles o Espírito, e os outros, não;mas em que haja alguns que conhecem Sua atuação no seu íntimo, habitando ali e implantando na sua vida o domínio de Deus, enquanto outros ainda querem ser senhores de si mesmos.
A revelação é o primeiro passo para a santidade, e a consagração é o segundo. Chegará um dia em nossas vi­das, tão definido como o dia da conversão, em que aban­donaremos todos os direitos sobre nós mesmos e nos sub­meteremos à soberania absoluta de Jesus Cristo. Talvez ha­ja um acontecimento sensível, vindo da parte de Deus, para comprovar a realidade da nossa consagração, mias, havendo ou não havendo, deve ser um dia em que, sem reservas, nos submetemos inteiramente a Ele — nossa pessoa, nossa família, nossas possessões, nossos negócios, nosso tempo. Tudo quanto temos e quanto somos deve vir a ser dEle, para doravante ser colocado inteiramente à Sua disposição. Desde aquele dia, já não somos senho­res de nós mesmos, e, sim, apenas mordomos. Até que a soberania de Jesus Cristo seja um fato consumado em nosso coração, o Espírito não pode realmente operar em nós de maneira eficaz. Isto só pode ser feito quando nos­sa vida é entregue totalmente à Sua direção. Se não Lhe dermos autoridade absoluta sobre as nossas vidas, Ele po­de estar presente mas não pode exercer o Seu poder. O poder do Espírito é detido.
Você está vivendo para o Senhor, ou para si mesmo? Talvez esta pergunta seja generalizada demais para se responder facilmente, então vou ser mais específico: vo­cê tem alguma coisa em sua vida que Deus está pedindo da sua parte, e que você está Lhe recusando? Há qual­quer ponto de atrito entre você e Deus? Antes de ter si­do terminada toda controvérsia com Deus, e entregue ao Espírito Santo pleno domínio da vida do crente, Ele não poderá reproduzir Cristo em tal vida
Deus espera que resolvamos todas as nossas contro­vérsias com Ele. A rendição absoluta de nós mesmos ao Senhor depende, geralmente, de alguma coisa específica e Deus a aponta com precisão. Ele quer que a entregue­mos a Ele, pois Ele deve ter tudo. Fiquei impressionadíssimo ao ler o que escreveu certo grande líder político na sua autobiografia: "Não desejo coisa alguma para mim mesmo. Quero tudo para a minha pátria." Se um ho­mem pode se dispor a deixar que a sua pátria tenha tudo e ele, nada, muito mais nós, os crentes, devemos saber dizer ao nosso Deus: "Senhor, não quero nada para mim, quero tudo para Ti, quero o que Tu quiseres e não desejo ter qualquer coisa fora da Tua vontade". Ele não pode assumir Seu papel de Senhor até que nós aceite­mos o nosso papel de servos. Ele não nos chama para nos dedicarmos a Sua causa: o que pede é que nos rendamos à Sua vontade. Você está pronto a tudo quanto Ele de­sejar?
Um pecador perdoado é inteiramente diferente de um pecador comum; e um cristão consagrado é inteiramente diferente de um cristão comum. Oxalá possa o Senhor nos levar a tomar uma posição firme na questão da Sua soberania. Se nos rendermos completamente a Ele, e rei­vindicarmos o poder do Espírito que habita em nós, não necessitaremos esperar por sentimentos especiais ou por manifestações sobrenaturais, mas poderemos simples­mente olhar para cima e louvá-Lo porque algo já aconte­ceu. Podemos agradecer-Lhe confiadamente, porque a glória de Deus já encheu o Seu templo. "Não sabeis que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? " "Não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de Deus?"


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O significado e o valor de Romanos 7

Voltamos agora a Romanos 7, um capítulo que por muitos tem sido considerado supérfluo. Talvez o fosse, se os cristãos realmente percebessem que a velha criação foi anulada pela Cruz de Cristo e que, pela Sua ressurrei­ção, uma nova criação entrou em cena. Se realmente ti­véssemos chegado ao ponto de "saber", de "considerar-nos" e de "apresentar-nos", na base do capítulo 6 de Romanos, segundo a explicação aventada no capítulo VI do nosso livro, talvez neste caso não necessitássemos de Romanos 7.
Outras pessoas sentem que o capítulo 7 está em lugar errado, preferindo colocá-lo entre os capítulos 5 e 6. Tu­do é tão perfeito e tão claro nas palavras do cap. 6, di­zem, e então, vem a prostração e o grito: "Desventurado homem que sou!" Poderia se imaginar uma progres­são mais descendente do que esta? Por esta razão, há alguns que argumentam que Paulo aqui fala da sua expe­riência de homem não regenerado. Bem, podemos admi­tir que algo do que ele aqui descreve não é bem uma experiência cristã, mas os cristãos que o experimentam não constituem uma minoria. Qual é, pois, o ensino deste capítulo?
Romanos 6 trata da libertação do pecado. Romanos 7 trata da libertação da Lei. No cap. 6, Paulo nos disse como podíamos ser libertados do pecado, e concluí­mos que isto era tudo quanto se exigia de nós. Agora, o cap. 7 vem nos ensinar que a libertação do pecado não é suficiente, mas que precisamos também conhecer a li­bertação da Lei. Se não estivermos totalmente emancipados da Lei, nunca poderemos experimentar a plena ' emancipação do pecado. Mas qual é a diferença entre ser livre do pecado e ser livre da Lei? Todos percebe­mos o valor daquele, mas onde está a necessidade deste? Para apreciá-lo, devemos entender primeiramente o que é a Lei e como ela opera.

A carne e o fracasso do homem

Romanos 7 tem uma lição para nos ensinar, que se relaciona com a descoberta de que eu estou "na carne" (Rm 7.5), de que "eu sou carnal" (7.14), e de que "em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum" (7.18). Isto vai além da questão do pecado, porque se relaciona também com a de agradar a Deus. Considera­mos aqui, não o pecado nas suas formas, mas o homem no seu estado carnal. Este inclui o primeiro, mas vai um passo além, levando-nos a descobrir que, nesta esfera também, estamos totalmente incapazes e que "os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8.8).
Vamos fazer uma ligeira pausa para procurar descre­ver o que é, provavelmente, a experiência de muitos cristãos que, embora sejam verdadeiramente salvos, ainda assim se deixam dominar pelo pecado. Não quer dizer que vivem permanentemente sob o poder do peca­do, mas que há certos e determinados pecados que sem­pre os seguem de perto, e que repetidas vezes cometem. Daí, certo dia, ouvem a plena mensagem do Evangelho, de que o Senhor Jesus não morreu somente para purifi­cá-los e despojá-los dos seus pecados, mas que, quando Ele morreu, incluiu os pecadores na Sua morte; de mo­do que não somente foi tratado o problema dos nossos pecados, como também nós mesmos fomos pessoalmen­te o alvo da ação divina. Os olhos de tais cristãos se abrem, e ficam sabendo que foram crucificados com Cristo, e, como resultado desta revelação, consideram que morreram e ressuscitaram com o Senhor, e, em segundo lugar, reconhecendo os direitos do Senhor so­bre eles, oferecem-se a Deus, como vivos dentre os mor­tos. Percebem que não têm mais qualquer direito sobre si próprios. Este é o começo de uma bela vida cristã, plena de louvor ao Senhor.
Em seguida, porém, alguém começa a raciocinar da seguinte maneira: "Morri com Cristo e estou ressurreto com Ele, e dei-me inteiramente a Ele para sempre. Ago­ra devo fazer alguma coisa por Ele, desde que Ele tanto fez por mim. Desejo agradar-Lhe e fazer a Sua vontade". Assim, após o passo da consagração, ele procura desco­brir a vontade de Deus, e se dispõe a obedecer. Então, faz uma descoberta estranha. Pensava que podia fazer a vontade de Deus, e pensava que a amava mas, pouco a pouco, descobre que nem sempre gosta de fazê-la. Às vezes, encontra uma relutância nítida e muitas vezes, quando se propõe fazer a vontade de Deus, verifica que não pode. Então, começa a levantar dúvidas quanto à sua experiência, e pergunta-se: "Será que realmente sei que fui incluído em Cristo? Sim. Será que realmente me considero morto para o pecado e vivo para Deus? Sim. Será que realmente me rendi a Ele? Sim. Já renunciei a minha consagração? Não. Então, qual é o problema que está surgindo? " Quanto mais este homem tenta fa­zer a vontade de Deus, tanto mais ele falha. Finalmente, chega à conclusão de que nunca tivera sincero amor pela vontade de Deus, e passa então a orar para receber a vontade e o poder de fazê-lo. Confessa a sua desobe­diência, e promete que nunca mais desobedecerá. No entanto, para cair uma vez mais, basta que ele se levante de onde estava ajoelhado em oração! Antes de alcançar a vitória, fica de novo consciente de outra der­rota. Então, diz para si mesmo: "Provavelmente não foi suficientemente definida a minha última decisão. Desta vez serei absolutamente definido." Assim sendo, convo­ca toda a força de vontade que possui — acabará, porém, por sofrer uma derrota pior do que nunca na próxima ocasião que precisar fazer uma escolha. Finalmente, tem que aplicar a si as palavras de Paulo: "Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem ne­nhum: pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo. Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço" (Rm 7.18, 19).

O que a Lei ensina

Muitos crentes se vêem lançados de súbito na expe­riência de Romanos 7 e não sabem por que. Imagina­vam que Romanos 6 era mais do que suficiente. Tendo apreendido o ensino deste capítulo, pensavam que não havia mais possibilidade de fracasso e, então, para gran­de surpresa sua, acharam-se repentinamente em Roma­nos 7. Qual é a explicação?
Em primeiro lugar, esclareçamos que a morte com Cristo, descrita em Romanos 6, é absolutamente adequa­da para satisfazer todas as nossas necessidades. É a expli­cação daquela morte, com tudo o que resulta dela, que está incompleta no capítulo 6. O capítulo 7 explica e torna real para nós a declaração em Rm 6.14: "o peca­do não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e, sim, da graça". O problema é que não conhece­mos ainda o que é ser livre da Lei. Qual é, pois, o signi­ficado da Lei?
A graça significa que Deus faz algo por mim. A Lei significa que eu faço alguma coisa por Deus. Deus tem certos requisitos santos e justos que me impõe: isto é a Lei. Ora, se a Lei significa que Deus requer algo da mi­nha parte, então ser liberto da Lei significa que Ele não requer mais coisa alguma de mim, porque Ele pró­prio fez a necessária provisão. A Lei implica em Deus requerer que eu faça algo por Ele; a libertação da Lei implica em que Ele já fez por mim, pela Sua graça, tudo quanto exigia de mim, isentando-me do seu cumprimen­to. Eu (o homem carnal de Rm 7.14) não preciso fazer nada para Deus - é isto o que significa ser liberto da Lei. O problema em Rm 7 consiste em que o homem, na carne, procura fazer alguma coisa para Deus. Esta tentativa imediatamente nos coloca de novo debaixo da Lei, e a experiência de Romanos 7 começa a ser a nossa.
A medida que procuramos compreender isto, fica sempre claro que a culpa não é da Lei. Paulo diz: "A Lei é santa; e o mandamento santo e justo e bom" (Rm 7. 12). Não, nada há de errado com a Lei, mas em mim há algo que não está indo nada bem. As exigências da Lei são justas, mas a pessoa a quem são feitas não é justa. O problema não está em haver requisitos injustos na Lei; está na minha incapacidade de satisfazê-los. Está muito certa a exigência do governo que me cobra cem cruzei­ros de imposto de renda, mas tudo estará errado se eu ti­ver apenas dez cruzeiros com que satisfazer tal exigência!
Sou um homem "vendido à escravidão do pecado" (Rm 7.14). O pecado tem domínio sobre mim. Enquan­to me deixam em paz, pareço ser um homem excelente; é só pedir que eu faça alguma coisa, para que minha pecaminosidade se revele.
Se tivermos um emprego muito desajeitado, estes de­feitos não se revelam enquanto ele fica sentado sem fa­zer coisa alguma. Talvez seja de pouca utilidade, mas pe­lo menos não causa danos ou prejuízos. Mandando-lhe que faça alguma coisa, seu dono imediatamente vê co­mo começam os problemas: quando se levanta, derruba a cadeira no chão, depois tropeça num banco, e ainda deixa cair o que se lhe põe nas mãos para carregar. As exigências são razoáveis, mas o homem é que está com­pletamente inapto. Não era um homem menos desajeita­do enquanto estava sentado, mas foi a ordem que lhe foi dada que o levou a demonstrar seus defeitos, os quais sempre tinha, estando ativo ou estando desocupado.
Somos todos pecadores por natureza. Se Deus nada requer da nossa parte, tudo parece ir bem, mas logo que Ele nos exige alguma coisa, surge a oportunidade de se revelar nossa enorme pecaminosidade. A Lei manifesta a nossa fraqueza. Enquanto me deixam ficar sentado, pa­reço estar muito bem, mas logo que me pedem alguma coisa, vou estragar e inutilizar o que da minha parte foi pedido. Quando a Lei santa é aplicada ao homem peca­minoso, logo se manifesta plenamente a pecaminosidade dele.
Deus sabe quem sou eu. Ele sabe que, da cabeça aos pés, estou cheio de pecado; Ele sabe que sou a fraqueza em pessoa, que sou incapaz de fazer coisa alguma. O pro­blema, porém, é que eu não o sei. Admito que todos os homens são pecadores e que, portanto, eu também sou pecador; fico pensando, porém, que não sou tão desesperadamente pecador como os outros. Deus tem que le­var cada um de nós ao ponto de reconhecermos quão fracos e sem forças estamos. Embora confessemos isto, não o acreditamos na prática, por isso Deus tem que operar de modo especial para nos convencer completa­mente. Sem a Lei, nunca saberíamos quão fracos e inca­pazes somos. Paulo já tinha alcançado esta experiência, conforme se percebe quando diz em Rm 7.7: "Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dis­sera: Não cobiçarás". Qualquer que tivesse sido a sua experiência com o restante da Lei, foi o décimo manda­mento, que literalmente traduzido é: "Não desejarás..." que lhe revelou o seu problema. Foi neste aspecto que a sua total fraqueza e incapacidade se lhe tornaram mani­festas.
Quanto mais procuramos guardar a Lei, tanto mais a nossa fraqueza se manifesta e tanto mais profundamente penetramos em Romanos 7, até que se nos demonstra claramente a nossa incapacidade total. Deus sempre o soube, nós, porém, não o reconhecemos, e por isso Deus tem que nos submeter a experiências dolorosas, até que cheguemos a reconhecer a verdade. É mister que nossa incapacidade nos seja revelada de maneira completamen­te fora de dúvida, e Deus faz isto mediante a Lei.
Deus sempre sabia que nunca poderíamos guardar a Sua lei, porque somos tão maus que Ele não pede favo­res nem faz exigências da nossa parte — nunca homem algum conseguiu tornar-se aceitável a Deus por meio de guardar a lei. Em parte alguma do Novo Testamento se diz que os homens de fé têm que guardar a Lei — diz-se que a Lei foi dada para que a transgressão se tornasse manifesta. "Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa" (Rm 5.20). A Lei foi dada para nos classificar como transgressores da Lei! Eu sou, sem dúvida, pecador em Adão: "Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei... porque sem a lei está morto o peca­do... mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu morri" (Rm 7.7-9). É a Lei que revela a nossa verdadeira natureza. Temos tão elevada opinião quanto ao valor da nossa própria pessoa, que necessitamos da parte de Deus certas experiências para nos provar quão fracos somos.
Quando, afinal, entendemos, confessamos: "Em todos os sentidos e aspectos sou pecador, e, de mim mesmo, nada posso fazer para agradar a Deus".
Não, a Lei não foi dada na expectativa de que a cum­príssemos. Foi-nos dada com o pleno conhecimento de que a quebraríamos; e, depois de a termos quebrado tão completamente que fiquemos convictos da nossa extre­ma necessidade, então a Lei já serviu o seu propósito. Foi o nosso pedagogo, que nos trouxe a Cristo, para que Ele próprio pudesse cumpri-la em nós (Gl 3.24).

Cristo, o fim da Lei

Em Romanos 6, vimos como Deus nos libertou do pe­cado; em Romanos 7, vemos como Ele nos liberta da Lei. No capítulo 6, vemos como se processa a libertação do pecado, na figura de um senhor e do seu escravo; no ca­pítulo 7, é a figura de dois maridos e uma mulher que nos ensina como fomos libertos da Lei. A relação entre o pecado e o pecador é simbolizada pela que existe entre senhor e servo; e entre a Lei e o pecador é simbolizada pela que existe entre marido e mulher.
Notemos que na figura em que Paulo ilustra a nossa li­bertação da Lei (Rm 7.1-14), há somente uma mulher e dois maridos. A mulher só pode pertencer a um deles, e, infelizmente, está casada com o menos desejável dos dois. É um homem bom, mas o problema está em que esta mu­lher não está de forma alguma indicada para ele. Ele é homem de personalidade forte e escrupuloso até ao mais alto grau; ela, por seu lado, é decididamente indolente. Para ele, tudo é definido e preciso; para ela, tudo é vago e casual. Ele exige precisão em tudo, e ela aceita as coi­sas como se apresentam. Como poderia haver alegria e felicidade num lar desta natureza?
Além disto, o marido é tão exigente! E, contudo, não se pode queixar dele, visto que, como marido, tem o di­reito de esperar o cumprimento de determinados deveres por parte dela e, além disto, tudo quanto exige é perfei­tamente legítimo. Não se pode achar falta nem no ho­mem, nem nas suas exigências; o problema é que não tem a mulher indicada para cumpri-las. Os dois não podem, de forma alguma, caminhar juntos; as suas nature­zas são extremamente incompatíveis. Assim, a pobre mu­lher encontra-se em grande angústia: está perfeitamente consciente dos erros que muitas vezes comete, mas viver com um homem desta natureza parece-lhe que tudo o que ela diz e faz seja errado. Que esperança pode existir para ela? Se pelo menos pudesse se casar com aquele outro Homem, tudo estaria bem. Não é menos exigente do que o marido, mas a verdade é que Ele ajuda muito também. Gostaria de se casar com Ele, mas o marido ainda está vivo. Que fazer então? Pela Lei, está ela liga­da ao marido, e, a não ser que ele morra, não pode legiti­mamente casar-se com Aquele outro Homem.
Esta ilustração é do próprio Apóstolo Paulo. O pri­meiro marido é a Lei; o segundo marido é Cristo; e nós somos a mulher. A Lei exige muito de nós e não oferece a mínima ajuda no cumprimento das exigências. O Se­nhor Jesus não exige menos, antes pelo contrário (Mt 5. 21-48) mas o que exige, Ele próprio o cumpre em nós, enquanto a Lei nos deixa sós e desamparados quanto à satisfação daquilo que de nós exige. Não é por nada que a mulher desejou ser libertada do primeiro marido para poder casar-se com aquele outro Homem. A sua única esperança de libertação, porém, está na morte do seu primeiro marido, e este se agarra à vida com muita tena­cidade, não havendo a menor perspectiva do seu faleci­mento. "Até que o Céu e a Terra passem, nem um i, ou um til, jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra" (Mt5.18).
A Lei continuará por toda a eternidade. Sendo que a Lei nunca passará, como poderei eu chegar a me ligar a Cristo? Como posso me casar com o segundo marido se o primeiro se recusa a morrer? Há apenas uma saída. Se ele não morrer, então eu posso morrer e, se eu morrer, aquela antiga relação conjugai é dissolvida. É exatamente este o processo divino da libertação da Lei. O detalhe mais importante a notar nesta seção de Romanos 7, é a transição do v. 3 para o v. 4. Os vv. 1 a 3 mostram que o marido deve morrer, mas, no v. 4, vemos que é a mulher que morre. A Lei não morre, mas eu morro e, pela morte, fico livre da Lei. Compreendamos claramente que a Lei nunca pode passar. As exigências justas de Deus perma­necem para sempre. Se eu viver, tenho que satisfazê-las, se eu morrer, porém, a Lei perde as suas reivindicações sobre mim. Não pode seguir-me para além da sepultura.
O mesmo princípio que opera em nos libertar da Lei também efetua a nossa libertação do pecado. Quando eu morri, o meu antigo senhor, o pecado, ainda continuou vivo, mas só pôde exercer o seu poder sobre o seu escra­vo até a sepultura deste. De mim ele podia exigir inúme­ras coisas enquanto eu estava vivo mas, agora que estou morto, é em vão que ele me chama. Estou liberto para sempre da sua tirania. Enquanto a mulher vive, está liga­da ao seu marido, mas com a morte dela, dissolve-se o laço conjugai, e "desobrigada ficará da lei conjugai". A lei pode continuar fazendo suas exigências, más, quanto a mim, terminou a autoridade que ela exercia para me fazer cumpri-las.
Surge agora a pergunta vital: "Como é que eu morro? "É justamente aqui que se revela o grande valor da obra de nosso Senhor: "Também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo" (Rm 7.4). Quando morreu Cristo, foi quebrantado o Seu corpo, e, já que Deus me incluiu nEle (I Co 1.30), eu também fui que­brantado. Quando Ele foi crucificado, eu fui crucificado com Ele.
Uma ilustração do Antigo Testamento pode nos ajudar a tornar clara esta verdade. Relaciona-se com o Véu que separava o Lugar Santo do Santo dos Santos (Êx 26.31). Naquela época, Deus habitava dentro do Véu, e o homem fora; este podia olhar para o Véu, mas nunca para dentro dele. O Véu simbolizava a carne do nosso Senhor, o Seu Corpo (Hb 10.20). Da mesma forma, nos Evangelhos, os homens podiam apenas ver a forma exterior do nosso Se­nhor; não podiam, exceto por revelação divina (Mt 16. 16-17) ver o Deus que nEle habitava. Quando, porém, o Senhor Jesus morreu, o véu do Templo foi rasgado de ci­ma à baixo (Mt 27.51), como pela mão de Deus, de modo que o homem podia olhar diretamente para dentro do Santo dos Santos. Desde a morte de Cristo, Deus já não está velado, mas procura manifestar-Se (I Co 2.7-10).
"Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativa­mente à lei, por meio do corpo de Cristo". Por melhor de saúde e forte que se ache o marido daquela mulher, se ela morrer ele pode ficar exigindo tudo quanto quiser da parte dela, mas ela não lhe dará a mínima atenção: a mor­te libertou-a de todas as reivindicações do seu marido. Nós estávamos no Senhor Jesus quando Ele morreu, e esta morte nos libertou para sempre da Lei. Ele, porém, não ficou na sepultura: ao terceiro dia ressurrectos, e nós, estando nEle, estamos também ressurretos. O Corpo do Senhor Jesus fala não só da Sua morte, mas também da Sua ressurreição. Assim, "por meio do corpo de Cristo", nós estamos não somente "mortos para a lei" mas, tam­bém, vivos para Deus.
O propósito de Deus, ao unir-nos a Cristo, não foi me­ramente negativo, foi gloriosamente positivo — "para pertencerdes a outro" (Rm 7.4). A morte dissolveu o antigo vínculo conjugai de modo que a mulher, levada ao desespero pelas constantes exigências do primeiro mari­do, que nunca levantou um dedo para auxiliá-la a cum­pri-las, fica agora livre para se casar com o outro Homem que, em relação a qualquer coisa que dela requeira, Se torna nela o poder necessário para Lhe dar satisfação.
E qual é o resultado desta união? "Para... frutifiquemos para Deus" (Rm 7.4). Pelo corpo de Cristo, morreu aquela mulher pecadora, mas, estando unida com Ele na morte, está unida com Ele na ressurreição também e, pelo poder da vida ressurreta, produz fruto para Deus. A vida ressurreta do Senhor nela, transmite-lhe o poder de dar satisfação a todas as exigências que a santidade de Deus requer dela. A Lei de Deus não é anulada; é perfeitamen­te cumprida, porque o Senhor ressurreto vive agora nela e a Sua vida agrada sempre perfeitamente ao Pai.
O que acontece quando uma mulher se casa? Não continua a usar apenas o seu nome, mas também o do seu marido, e não participa apenas do nome dele, como também das suas possessões. Assim acontece quando estamos unidos com Cristo. Quando Lhe pertencemos, tudo o que é Seu torna-se nosso. Com os Seus infinitos recursos à nossa disposição, ficamos perfeitamente habi­litados a satisfazer todas as Suas exigências.

Nosso fim é o começo para Deus

Agora que estabelecemos o aspecto doutrinai da ques­tão, devemos descer a aspectos práticos, demorando-nos aqui um pouco mais com o aspecto negativo, e guardan­do o positivo para o capítulo seguinte. O que significa, na vida de cada dia, ser libertado do poder da Lei? Sig­nifica que, daqui em diante, não vou fazer coisa alguma para Deus, não vou fazer as minhas tentativas de agradar-Lhe. Talvez você proteste: "Que doutrina! Que terrível heresia! Certamente não é isso que quer dizer".
Lembremo-nos, porém, de que se eu tentar agradar a Deus "na carne", coloco-me imediatamente sob a Lei. Quebrei a Lei, e ela pronunciou sobre mim a sentença de morte, e esta foi executada, de maneira que, pela morte, eu - o "eu" carnal (Rm 7.14) - fui libertado de todas as suas reivindicações. Há ainda uma Lei de Deus, e agora há, sim, "um novo mandamento", que é infinita­mente mais exigente do que o velho, mas, graças a Deus, as suas exigências serão satisfeitas, pois é Cristo quem agora as cumpre, é Cristo que opera em mim o que é agradável a Deus. "Eu vim... para cumprir (a Lei)" - fo­ram as Suas palavras (Mt 5.17). Assim, Paulo, baseado na ressurreição, pode dizer: "Desenvolvei a vossa salva­ção com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós, tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade" (Fp 2.12,13).
É DEUS quem efetua em vós. A libertação da Lei não significa que estamos livres de fazer a vontade de Deus. Certamente não se trata de nós agora sermos pessoas sem lei. Muito pelo contrário! O que significa, contudo, é que estamos livres de fazer, por nós mesmos, o que Ele quer. Estando plenamente persuadidos de que não pode­mos fazê-lo, cessamos de procurar agradar a Deus no nível do homem velho. Tendo, finalmente, alcançado aquela situação em que desesperamos em extremo de nós próprios, ao ponto de abandonar nossas tentativas, colocando no Senhor toda a nossa confiança nesta matéria, então poderemos ter a certeza de que Ele manifesta­rá em nós a Sua própria vida ressurreta.
Quanto mais cedo nós também desistirmos de tentar, tanto melhor, porque se monopolizarmos a tarefa, não deixaremos então lugar para o Espírito Santo. Mas, se dissermos: "Eu não o farei; confiarei em Ti para que o faças por mim", verificaremos então que um Poder mais forte do que nós próprios realizará a tarefa por nosso intermédio.
Em 1923 encontrei um famoso evangelista canadense. Numa minha mensagem, eu falara em termos semelhan­tes ao que acima foi exposto, e, quando mais tarde ca­minhávamos de regresso à sua casa, ele observou: "Pou­cas vezes soa hoje a nota de Romanos 7. E bom ouvi-la de novo. O dia em que fui libertado da Lei, foi um dia de Céu sobre a terra. Depois de ser crente durante vários anos, ainda procurava fazer esforços para agradar a Deus, mas quanto mais tentativas fazia, tanto mais fracassava. Considerava Deus o Ser mais exigente do Universo, e me considerava incapaz de cumprir o menor dos Seus man­damentos. Certo dia, enquanto lia Romanos 7, a luz se derramou sobre mim de repente, e percebi que fora li­bertado, não só do pecado, mas também da Lei. Pulei de alegria e disse: "Senhor, Tu realmente não fazes mais exi­gências de mim? Então, eu não preciso fazer coisa algu­ma para Ti!"
As exigências de Deus não foram alteradas, mas não somos nós quem vai enfrentá-las. Graças a Deus, Ele é o Legislador no Trono e também o Guardador da Lei no meu coração. Aquele que deu a Lei, Ele próprio a guarda. Ele faz as exigências, e também as satisfaz. Enquanto fi­zermos as nossas tentativas, Ele não tem caminho livre para fazer em nós coisa alguma. São as nossas próprias tentativas que nos levam a fracasso após fracasso. Deus deseja nos ensinar que, por nós mesmos, nada podemos fazer, e, até que reconheçamos plenamente esta verdade, não cessarão as nossas decepções e desilusões.
Certo irmão que lutava para alcançar a vitória obser­vou: "Não sei por que sou tão fraco". "O seu problema", respondi, "é que o irmão é fraco demais para cumprir a vontade de Deus, mas não suficientemente fraco para abandonar a tentativa de agradar-Lhe. Somente quando você estiver reduzido à fraqueza extrema e chegar à con­vicção de que não pode fazer coisa alguma, é que Deus passará a fazer tudo". Todos nós devemos chegar à con­clusão que se expressa assim: "Senhor, sou incapaz de fazer para Ti coisa alguma, mas confio que Tu farás tudo em mim".
Certa vez passei algum tempo com cerca de vinte irmãos num local onde, não havendo recursos adequa­dos onde estávamos hospedados para tomar banho, dia­riamente nos dirigíamos ao rio para um mergulho. Numa destas ocasiões, um irmão teve cãibra numa perna, e vi que ia afundar-se. Fiz sinal para que outro irmão, exímio nadador, se apressasse a socorrê-lo. Fiquei perplexo ao ver que este não se mexeu, e gritei no meu desespero: "Não vê que o homem está se afundando? " E os demais irmãos em volta, tão agitados como eu, também grita­vam vigorosamente. Nosso bom nadador, porém, ainda nem se mexeu, como se fosse adiar ou recusar a desagra­dável missão. Nesse ínterim, a voz do pobre irmão que se afogava, foi se enfraquecendo, e os seus esforços fo­ram ficando mais débeis. No meu coração disse: "Odeio este homem! Deixa um irmão afogar-se perante os seus olhos, sem ir em seu auxílio!"
Quando, porém, o homem estava realmente se afun­dando, o nadador, com poucas e rápidas braçadas, encon­trava-se ao seu lado, e ambos chegaram a salvo à margem. Na primeira oportunidade, dei a minha opinião: "Nunca vi qualquer cristão que amasse a sua vida tanto como vo­cê! Pense, quanta aflição você poderia ter poupado àque­le irmão se tivesse considerado um pouco menos a sua própria pessoa, e pensado um pouco mais nele". O na­dador, porém, conhecia o seu trabalho melhor do que eu. "Se eu tivesse ido mais cedo", respondeu, "ele ter-me--ia agarrado tão fortemente que ambos nos teríamos afun­dado. Quando um homem está se afogando, não pode ser salvo até que fique completamente exausto e deixe de fazer o mínimo esforço para se salvar".
Você percebe? Quando nós abandonamos o caso, Deus passa a Se encarregar dele. Fica esperando até que os nossos recursos se esgotem e nada possamos fazer por nós próprios. Deus condenou tudo o que é da velha cria­ção e consignou-o à Cruz. A carne de nada aproveita. Qualquer tentativa de fazer algo na carne, é virtualmente um repúdio à Cruz de Cristo. Deus nos declarou aptos apenas para a morte. Quando realmente cremos nisto, confirmamos o veredito de Deus, abandonando todos os nossos esforços carnais no sentido de agradar-Lhe. Os nossos esforços neste sentido procuram negar a Sua de­claração, na Cruz, da nossa absoluta inutilidade. Se conti­nuarmos nos nossos esforços próprios, demonstraremos que não entendemos devidamente nem o que Deus exige de nós, nem a origem do poder para cumprir as exigên­cias.
Vemos a Lei e pensamos que devemos satisfazer as suas exigências, mas precisamos ter em mente que, embo­ra a Lei seja em si mesma reta e justa, tudo falhará se ela for aplicada à pessoa errada. O "desventurado homem" de Romanos 7, procurou satisfazer por si mesmo a Lei de Deus, e foi essa a causa da sua aflição. O repetido emprego da pequena palavra "Eu", neste capitulo, dá-nos a indicação da causa do fracasso. "Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço" (Rm 7.19). Na mente deste homem havia um conceito fundamental errado: pensava que Deus lhe pedia que guardasse a Lei, de modo que, evidentemente, procurou guardá-la. Deus, porém, não exigia tal coisa da parte de­le. Qual foi o resultado? Longe de fazer o que agradava a Deus, acabou fazendo o que Lhe desagradava. Nos seus próprios esforços para fazer a vontade de Deus, fa­zia exatamente o oposto daquilo que sabia ser a Sua vontade.

Dou graças a Deus

Romanos 6, trata do "corpo do pecado", e Romanos 7 do "corpo desta morte" (Rm 6.6; 7.24). No capítulo 6, trata-se da questão do pecado; no capitulo 7, a ques­tão diz respeito à morte. Qual é a diferença entre o cor­po do pecado e o corpo da morte? Em relação ao pecado (ou seja, a tudo aquilo que desagrada a Deus) eu te­nho um corpo de pecado - o que quer dizer um corpo ativamente comprometido no pecado. Em relação à Lei de Deus (ou seja, aquilo que expressa a vontade de Deus), tenho um corpo de morte. A minha atividade no pecado faz com que meu corpo seja um corpo de pecado; o meu fracasso no cumprimento da vontade de Deus faz com que meu corpo seja um corpo de morte. Em relação a tudo quanto é mau, mundano e satânico, eu sou inteira­mente positivo na minha natureza; no que diz respeito a tudo quanto se relaciona com a santidade, o Céu, e Deus, sou, porém, totalmente negativo.
Você já descobriu esta verdade na sua vida? Não se trata de descobri-la meramente em Romanos 6 e 7. Já descobriu que você transporta consigo o estorvo de um corpo sem vida, no que diz respeito à vontade de Deus? Você não sente dificuldade em falar acerca das coisas mundanas, mas quando procura falar acerca do Senhor, sua língua fica como que presa; quando quer orar, sente-se sonolento; quando se esforça para fazer algo para o Senhor, não se sente bem. Pode fazer tudo, exceto o que está relacionado com a vontade de Deus. Há algo neste corpo que não se harmoniza com a vontade de Deus.
O que significa a morte? Podemos ilustrá-la com um versículo bíblico: "Eis a razão por que há entre vós mui­tos fracos e doentes, e não poucos que dormem" (I Co 11.30). A morte é fraqueza extrema, significa que se está totalmente fraco e destituído de forças. Ter um corpo de morte, no que diz respeito à vontade de Deus, signifi­ca que sou tão fraco no Seu serviço que fico reduzido a uma posição de horrível desamparo. "Desventurado ho­mem que sou! quem me livrará do corpo desta morte?" clamou Paulo, e é bom que alguém clame assim diante de Deus, porque aos Seus ouvidos nada soa mais harmonio­so. É o grito mais bíblico e espiritual que um homem po­de emitir. Só quem está convicto da sua impossibilidade de fazer coisa alguma, e que desistiu de tomar novas re­soluções por si mesmo, poderá clamar assim a Deus. Até chegar a tal ponto, todas as vezes que falhava, tornava uma nova resolução e redobrava o emprego da sua força de vontade. Finalmente, descobre que dão há qualquer van­tagem em continuar a usar sua própria força mental, e grita, desesperado: "Desventurado homem que sou!" Como um homem que subitamente acorda dentro de um edifício incendiado, grita por socorro, porque chegou a uma situação em que se desespera de si mesmo.
Você já desistiu de si mesmo, ou ainda tem a espe­rança de que, se ler e orar mais se tornará um cristão me­lhor? Deus nos livre de sugerir que a leitura da Bíblia e a oração são coisas erradas, no entanto, é um erro confiar mesmo nelas para alcançar a vitória. O nosso socorro vem dAquele que é o alvo de tal leitura e de tal oração. A nossa confiança deve estar unicamente em Cristo. Fe­lizmente, o "desventurado homem" vai além de deplo­rar a sua triste condição — faz uma bela pergunta: "Quem me livrará? " "Quem? " Até aqui, ele procurava alguma coisa; agora, a sua esperança está numa Pessoa. Até aqui procurou, dentro de si, uma solução para o seu proble­ma; agora, olha para além de si mesmo, para o Salvador. Não continua a operar com seu esforço próprio; toda a sua expectativa agora se coloca no Outro.
Como obtivemos o perdão dos pecados? Foi por meio da leitura, da oração, das ofertas, e de outras coisas semelhantes? Não, olhamos para a Cruz, crendo no que o Senhor Jesus fizera; e a libertação do pecado vem a ser nossa própria experiência pelo mesmo princípio; a mes­ma regra se aplica também ao assunto de agradarmos a Deus. Procurando o perdão, olhamos para Cristo na Cruz; buscando a libertação do pecado e poder para fazer a vontade de Deus, olhamos para Cristo em nosso coração. Em relação à primeira, dependemos do que Ele fez; em relação à segunda, dependemos do que Ele fará em nós; em ambos os casos, dependemos exclusivamente dEle. É Ele que opera tudo, somente Ele.
Na época em que foi escrita a Epístola aos Romanos, um assassino era punido de forma terrível e estranha. O corpo morto do assassinado ligava-se ao corpo vivo do assassino, cabeça com cabeça, mão com mão, pé com pé, e o homem vivo ficava amarrado ao morto até à sua pró­pria morte. O assassino podia ir aonde desejasse mas, aonde quer que fosse, teria que transportar o cadáver do homem que matara. Haveria castigo mais terrível? Esta, no entanto, é a ilustração que Paulo agora emprega. É como se estivesse ligado a um cadáver do qual fosse inca­paz de libertar-se. Onde quer que ele vá, sente-se embara­çado por este fardo terrível. Finalmente, não pode su­portá-lo mais e grita: "Desventurado homem que sou! Quem me livrará?" É então que, graças a uma ilumina­ção súbita, o seu grito de desespero se transforma em cântico de louvor. Ele achou a resposta à sua pergunta, e exclama: "Graças a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor" (Rm7.25).
Sabemos que nossa justificação nos foi dada mediante a graça do nosso Senhor Jesus Cristo, sem qualquer esfor­ço da nossa parte, mas pensamos que a santificação de­pende dos nossos próprios esforços. Sabemos que pode­mos receber o perdão mediante dependermos inteiramen­te do Senhor; contudo, cremos que podemos obter a li­bertação do poder do pecado fazendo alguma coisa por nós mesmos. Receamos que, se nada fizermos, nada acon­tecerá. Depois da salvação, o velho ato do "fazer" reafir­ma-se e começamos de novo aqueles nossos antigos esfor­ços próprios. Então, a Palavra de Deus soa de novo ao nosso coração: "Está consumado!" (João 9.30). Ele fez tudo, na Cruz, para alcançar o nosso perdão, e Ele fará tudo, em nós, para realizar a nossa libertação. Em ambos os casos, é Ele que opera. "É Deus quem efetua em vós".
As primeiras palavras do homem libertado são precio­síssimas — "Graças a Deus". Se alguém lhe der urn copo de água, você agradecerá à pessoa que lho deu, e não a qualquer outra. Por que disse Paulo, "Graças a Deus"? Porque foi Deus Quem tudo operou. Se tivesse sido Paulo quem fez a obra, teria dito: "Graças a Paulo". Ele porém percebeu que Paulo era um "desventurado homem" e quef somente Deus podia satisfazer a sua necessidade; é por isso que diz: "Graças a Deus". Deus deseja fazer tudo, pois Ele deve ter toda a glória. Se fizermos uma parte do trabalho, então alcançaremos uma parte da glória; mas Deus recebe para Si toda a glória, porque a obra total é dEle, do começo até ao fim.
O que foi dito neste capitulo pareceria negativo e sem valor prático se parássemos aqui, como se a vida cristã fosse questão de ficarmos assentados à espera de algum acontecimento. É evidente que a realidade é algo bem di­ferente, e todos os que realmente vivem esta vida sabem que se trata da fé dinâmica, ativa e positiva em Cristo, de um princípio de vida inteiramente novo — a lei do Espí­rito da vida. Vamos agora, no capítulo seguinte, exami­nar os efeitos, em nós, deste novo princípio de vida.


10

A vereda do progresso:

andando no Espírito

Passando agora a Romanos 8, podemos, primeiramen­te, resumir em duas frases o argumento da nossa segunda divisão da Epístola (5.12 — 8.39), cada um oferecendo um contraste e assinalando um aspecto da experiência cristã:
Rm 5.12 a 6.23: "Em Adão" e "em Cristo".
Rm 7.1 a 8.39: "Na carne" e "no Espírito".
Precisamos entender as relações existentes entre estas quatro coisas. As duas primeiras são "objetivas" e expres­sam a nossa "posição" — primeiramente, como éramos por natureza e, em segundo lugar, como somos agora pela fé na obra redentora de Cristo. As duas últimas são "sub­jetivas" e dizem respeito ao nosso andar como questão de experiência prática. A Escritura nos mostra claramen­te que as duas primeiras nos oferecem apenas um aspecto do quadro, e que as outras duas são necessárias para completá-lo. Pensamos que é suficiente estar "em Cristo" mas agora aprendemos que também devemos andar "no Espírito" (Rm 8.9). A freqüência com que aparece a expressão "o Espírito" na primeira parte de Rm 8, con­tribui para sublinhar esta nova e importante lição da vida cristã.

A carne e o Espírito

A carne está vinculada a Adão; o Espírito está vincula­do a Cristo. Considerando agora solucionada a questão de estarmos em Adão ou em Cristo, devemos perguntar a nós mesmos: Estou vivendo na carne ou no Espírito?
Viver na carne é fazer alguma coisa da minha própria parte, como estando em Adão. Consiste em derivar for­ças da velha fonte da vida natural que dele herdei, pelas quais desfruto na experiência de toda aquela capacidade, que todos' nós temos achado tão eficaz, para pecarmos. Ora, o mesmo princípio se aplica àquele que está em Cristo: para desfrutar, na prática e na experiência, de tu­do o que é meu por causa de estar nEle, devo aprender a andar no Espírito. É um fato histórico que, em Cristo, o meu velho homem foi crucificado, é um fato presente que eu sou abençoado "com toda bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo" (Ef 1.3); mas, se eu não viver no Espírito, a minha vida poderá passar a ser uma total contradição, por não expressar na prática tudo o que é meu por causa de estar em Cristo. Reconheço que estou em Cristo, mas tenho também que encarar a verda­de de que o meu antigo mau gênio ainda está em evidên­cia.
Qual é o problema? É que considero a verdade ape­nas de maneira objetiva, e não também subjetivamente,o que acontecerá apenas na medida em que vivo no Espíri­to.
Não somente estou em Cristo: Cristo também está em mim. E assim como, fisicamente, um homem não pode viver e trabalhar debaixo da água mas somente no ar, assim, espiritualmente, Cristo habita e Se manifesta não na "carne" mas no Espírito. Portanto, se eu viver "se­gundo a carne", verifico que minha participação em Cris­to fica como que em suspenso no meu ser. Embora eu realmente esteja em Cristo, se viver na carne, pelas mi­nhas próprias forças e sob minha própria direção - então, na prática e na experiência, verifico, consternado, que é alguma coisa de Adão que se manifesta em mim. Se eu quiser conhecer na experiência tudo quanto possuo em Cristo, então terei que aprender a viver no Espírito.
Viver no Espírito significa que eu confio no Espírito Santo para fazer em mim o que não posso fazer por mim mesmo. Esta vida é completamente diferente da vida que eu viveria naturalmente por mim mesmo. Cada vez que eu deparo com uma nova exigência do Senhor, olho para Ele, a fim de que Ele faça em mim aquilo que de mim requer. Não se trata de tentar, mas de confiar; não consis­te em lutar, mas em descansar nEle. Se tiver um tempe­ramento impulsivo, pensamentos impuros, a língua desre­grada, ou um espírito crítico, não me proporei modificar-me mediante certo esforço meu, mas, considerando-me morto, em Cristo, para estas coisas, contarei com o Espí­rito de Deus para que Ele produza em mim a pureza ou a humildade ou a mansidão necessária. É isto que significa: "Aquietai-vos e vede o livramento do SENHOR, que ho­je vos fará" (Êx 14.13).
Alguns de nós, sem dúvida, já tivemos uma experiên­cia análoga à seguinte: fomos solicitados a visitar certa pessoa que sabíamos ser de natureza pouco amigável. Todavia, confiamos que o Senhor nos dirigisse. Antes de sair, dissemos-Lhe que, em nós mesmos, falha­ríamos, e solicitamos da parte dEle os recursos que nos seriam necessários. Então, para surpresa nossa, não nos sentimos nada irritados, embora a pessoa em questão estivesse longe de ser amável e simpática. No regresso, revimos a experiência, e maravilhamo-nos por termos permanecido tão calmos, e perguntamo-nos se, na próxi­ma vez, estaríamos tão serenos. Estávamos perplexos e buscávamos uma explicação. Esta é a explicação: o Espí­rito Santo nos dirigiu em toda aquela experiência.
Infelizmente, só temos este tipo de experiência de vez em quando, mas deveria ser uma experiência constante. Quando o Espírito Santo toma conta, não há necessida­de de esforços da nossa parte. Não se trata de nos domi­nar através da nossa força de vontade para obter, a duras penas, uma gloriosa vitória. Não, onde se manifesta a verdadeira vitória, não há esforço carnal, pois é o próprio Senhor Quem nos conduz maravilhosamente.
O alvo da tentação é sempre nos levar a fazer alguma coisa. Durante os primeiros três meses da guerra japone­sa na China, perdemos grande número de tanques, e fica­mos assim impossibilitados de enfrentar os tanques japo­neses até que se divisou o seguinte plano. Um único tiro seria disparado contra um tanque japonês por um dos nossos atiradores especiais emboscado. Após um lapso de tempo, seguir-se-ia um segundo tiro; depois, após novo silêncio, outro; até que o condutor, ansioso por localizar a origem da perturbação, colocaria a cabeça para fora, olhando em derredor. O tiro seguinte, cuidadosamente apontado, acabaria com ele.
Enquanto o homem permanecia protegido, estava em perfeita segurança. Todo o plano foi forjado com o fim de pô-lo a descoberto. Do mesmo modo, as tentações de Satanás não se destinam, primariamente, a fazer-nos cometer algo especialmente pecaminoso, mas têm por fim levar-nos a agir com nossa própria energia; e logo que ensaiamos um passo fora do nosso refúgio, a fim de fazer­mos qualquer coisa nessa base, ele alcança vitória sobre nós. Se não nos mexemos, se não sairmos da cobertura de Cristo para o ambiente da carne, ele não poderá nos atingir.
O caminho divino da vitória não nos permite fazer se­ja o que for sem Cristo. E isto porque, logo que nos mo­vemos, corremos perigo, visto que as nossas inclinações materiais nos levam na direção errada. Onde devemos, então, procurar auxílio? Consideremos agora Gálatas 5.17: "A carne milita contra o Espírito e o Espírito contra a carne". Noutras palavras, a carne não luta contra nós, mas contra o Espírito Santo, "porque são opostos entre si", e é Ele, e não nós, que enfrenta a carne e trata com ela! Qual é o resultado? "Para que não façais o que por­ventura seja do vosso querer".
Penso que às vezes entendemos em sentido errado a última afirmação deste versículo. Nós, pela nossa nature­za, faríamos tudo aquilo que nossos instintos ditam, inde­pendentemente da vontade de Deus. Quando, porém, deixamos de agir por nós mesmos, o Espírito Santo rece­be liberdade para enfrentar em nós a nossa carne, e para solucionar o problema; quando abrirmos mão das nossas inclinações, da nossa carreira, dos nossos planos, achare­mos a nossa satisfação em Seu plano perfeito. Pelo que temos o princípio: "Andai no Espírito, e jamais satisfareis à concupiscência da carne" (Gl 5.16). Se andarmos no Espírito, se andarmos por fé no Cristo ressurreto, podemos verdadeiramente ficar alheios, enquanto o Espírito ganha novas vitórias, cada dia, sobre a carne; foi por isso que Ele nos foi concedido. A nossa vitória reside em nos escondermos em Cristo, contando, com confiança singela, no Seu Santo Espírito para vencer, em nós, as nossas concupiscências carnais, pelos novos desejos que Ele nos dá. A Cruz nos foi dada para a nossa salvação; o Espírito nos foi dado para fazer a salvação frutificar em nós. Cristo ressurreto é assunto e base da nossa sal­vação; Cristo nos nossos corações, pelo Espírito, é o po­der da mesma.

Cristo é a nossa vida

"Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor" — esta exclamação de Paulo é fundamentalmente a mesma que faz em Gálatas 2.20: "Já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim". Vimos quão proeminente é a palavra "Eu" em todo o argumento que ele desenvolve em Romanos 7, culminando no grito de agonia: "Desventurado que eu sou!" Segue-se depois a exclamação de livramento: "Gra­ças a Deus... Jesus Cristo!" e vê-se com clareza que a des­coberta que Paulo fez foi esta: a vida que vivemos é a vi­da de Cristo somente. Pensamos que a vida cristã é uma vida transformada, mas, na realidade, é uma "vida substi­tuída" — Cristo é o nosso Substituto, dentro de nós. "Já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim". Esta vida não é algo que nós tenhamos que produzir. É a própria vida de Cristo reproduzida em nós.
Quantos crentes crêem na "reprodução", neste senti­do, como algo mais do que a regeneração? A regenera­ção significa que a vida de Cristo é implantada em nós pelo Espírito Santo quando nascemos de novo. A "repro­dução" vai mais longe: significa que essa vida nova se de­senvolve e se torna progressivamente manifesta em nós, até que a própria semelhança de Cristo começa a ser pro­duzida nas nossas vidas. É o que Paulo quer dizer quan­do fala das suas "dores de parto" pelos Gálatas, "até ser Cristo formado em vós" (Gl 4.19).
Vou ilustrar este princípio com outra história. Cheguei certa vez, na América, à casa de um casal salvo, que me pediu para orar em seu favor. "Ultimamente estamos num estado lastimável; ficamos irritados e zangados mui­tas vezes ao dia. Queremos pedir que Cristo nos dê paci­ência", foi a explicação deles. Perguntei-lhes se já oraram a este respeito. "Sim, já o fizemos", responderam. "Mas Deus lhes respondeu?" "Não". "Sabem por quê? Por­que não é paciência que lhes falta". A esposa, com ares de espanto, disse: "O que? Não necessitamos de paciên­cia, nós que andamos nervosos o dia inteiro? O que quer dizer com isso? " Respondi-lhe: "Não é de paciência que necessitam, mas de Cristo".
Deus não me dará humildade, ou paciência, ou santi­dade, ou amor, como dons separados da Sua graça. Ele não é um retalhista que nos dispensa graça em doses, medindo um pouco de paciência para os impacientes, algum amor para os que não o têm, alguma mansidão para os arrogantes, em quantidades que tomamos e usa­mos como uma espécie de capital. Ele nos deu um único Dom para satisfazer todas as nossas necessidades — o Seu Filho Jesus Cristo, e na medida em que lhe permito viver a Sua vida em mim, Ele, em meu lugar, será humil­de e amoroso e tudo o mais que necessito. "...Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no Seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida" (I João 5.12). A vida de Deus não nos é dada como coisa separada; é no Filho que a recebemos. É "vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 6.23). A nossa relação com o Filho é a nossa relação com a vida.
É coisa abençoada descobrir a diferença entre as graças cristãs e Cristo; conhecer a diferença entre a mansidão e o próprio Cristo, entre a paciência e Cristo, entre o amor e Cristo: "Cristo Jesus... se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e reden­ção" (I Co 1.30).
O conceito comum de santificação é que a vida, em todos os seus aspectos, deve ser santa; isto, porém, é ape­nas o fruto da santidade. A santidade é Cristo. É o Se­nhor Jesus sendo transferido para nós, afim de sermos o que devemos ser, o amor, a humildade, o poder, o domí­nio próprio. Hoje há um apelo à paciência. Então, é Ele a nossa paciência. Amanhã, há um clamor pela pureza: então, é Ele a nossa pureza. É Ele, pessoalmente, a res­posta a toda a necessidade. É por isso que Paulo fala do "fruto do Espírito", como se tratando de um só (Gl 5. 22) e não de "frutos" como características separadas. Deus nos deu o Seu Espírito Santo, e quando precisamos de amor, o fruto do Espírito nos é dado em forma de amor; quando nos falta alegria, o fruto do Espírito é go­zo. É sempre verdade, não importa qual seja a deficiência pessoal, ainda que nos falte um sem número de coisas, Deus tem a resposta suficiente a cada necessidade huma­na: é Seu Filho Jesus Cristo.
Como podemos conhecer mais de Cristo a este propó­sito? Somente tendo sempre mais consciência do nosso mister. Alguns receiam que isto revelará as suas próprias deficiências, e assim nunca aceitam este processo de crescimento, esquecendo-se que isto significa crescer na graça, e que esta graça significa que Deus faz algo para nós. Todos temos o mesmo Cristo habitando dentro de nós, e a revelação de qualquer deficiência nos­sa apenas servirá a nos levar a depender espontaneamente dEle, confiados em que Ele viverá a Sua vida em nós de modo a suprir aquela necessidade. Maior capacidade de recepção significa maior usufruto do suprimento de Deus Cada ato de abrir mão dos nossos esforços próprios numt. atitude de confiante dependência de Cristo, é mais um passo na conquista do terreno. "Cristo — a minha vida" é o segredo de conquistas sempre maiores.
Já falamos, entre outras coisas, da diferença entre o esforço próprio e a confiança; a diferença entre estas ati­tudes é tão grande como a que há entre o Céu e o Inferno. Recusar-me a agir, depender dEle para atuar, para então entrar com firmeza e alegria na ação por Ele iniciada, longe de ser mera passividade, é a vida na sua plenitude de atividade, em comunhão com o Senhor. Recebo dEle a vida, tomo-O para ser a minha própria vida, e permito que Ele viva manifestamente a Sua vida em mim.

A lei do Espírito de vida

"Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte" (Rm 8.1,2).
É no capítulo 8 que Paulo nos apresenta pormenores do aspecto positivo da vida no Espírito. "Agora, pois, nenhuma condenação há", diz ele, e não há dúvida de que a condenação foi satisfeita pelo sangue, por meio de que achamos paz com Deus e a salvação da ira (Rm 5.1,9). Há, todavia, duas espécies de condenação: a diante de Deus e a perante mim próprio (assim como os dois tipos de paz que já comentamos) e a segunda pode às vezes nos parecer mais terrível do que a primeira. Quando per­cebemos que o sangue de Cristo satisfez a justiça de Deus, então sabemos que os nossos pecados foram perdoados, não havendo mais condenação para nós diante de Deus. Posso, todavia, ainda sofrer derrotas, e o conseqüente sentimento de condenação interior pode ser muito real, conforme revela Romanos 7. Se, porém, eu aprendi a vi­ver por Cristo, com a minha vida, então já aprendi o se­gredo da vitória e, graças a Deus, já nenhuma condenação há para mim. "O pendor do Espírito é para a vida e paz" (Rm 8.6), e isto entra na minha experiência na medida em que aprendo a andar no Espírito. Com paz no cora­ção, não tenho ocasião de me sentir condenado. Só tenho motivo de louvar Aquele que me conduz de vitória a vi­tória.
O que, então, havia por detrás do meu sentimento de condenação? Não foi a experiência de derrota e o senti­mento da minha própria incapacidade de remediar tal si­tuação? Antes de reconhecer que Cristo é a minha vida, eu labutava sob um sentimento constante de frustração; minhas limitações me acompanhavam a cada passo; em qualquer situação, sentia minha própria incapacidade. Sempre clamava: "Não posso fazer isto! Não posso fazer aquilo!" Apesar das minhas repetidas tentativas verifica­va que eu "não podia agradar a Deus" (Rm 8.8). Em Cristo, no entanto, não existe o "Eu não posso". Pelo contrário, agora: "Tudo posso nAquele que me fortalece" (Fp4.13).
Como pode Paulo ter tanta coragem? Em que se baseia para dizer que agora está livre de limitações e que agora tudo pode fazer? Eis a resposta: "Porque a lei do Espíri­to da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte" (Rm 8.2). Por que não há mais condenação? É porque uma lei chamada "a lei do Espírito da vida" se demonstrou mais forte do que outra lei chamada "a lei do pecado e da morte". O que são estas leis? Como ope­ram? Qual é a diferença entre o pecado e a lei do pecado e entre a morte e a lei da morte?
Em primeiro lugar, devemos definir o que é uma lei. A rigor, uma lei é uma generalização examinada até que se prove não haver exceção. É alguma coisa que acontece repetidamente, e ao acontecer, é sempre de maneira já observada. Podemos ilustrar este princípio por meio da lei natural da gravidade, que todos conhecemos. Se dei­xar cair o meu lenço em São Paulo, cairá no chão. É este o efeito da gravidade, e o mesmo acontece se o deixar cair em Santa Catarina ou em Manaus, porque os mes­mos resultados se produzem em qualquer lugar em que o deixar cair. Sempre que prevalecem as mesmas condições, observam-se os mesmos efeitos. Assim se manifesta a lei da gravidade.
O que diremos agora da lei do pecado e da morte? Se alguém faz um comentário desagradável a meu respeito, imediatamente alguma coisa dentro de mim se perturba. Isto não é lei, é pecado. Mas se, quando diferentes pes­soas fazem observações ásperas a meu respeito, a mesma coisa se agita e perturba o meu íntimo, então descubro uma lei interior — a lei do pecado.
Como a lei da gravidade, é alguma coisa constante. Opera sempre do mesmo modo. E o mesmo acontece também com a lei da morte. A morte é a fraqueza que chega ao extremo. A fraqueza é "eu não posso". Ora, se quando procuro agradar a Deus, em determinado assun­to, verifico que não posso, e se quando procuro agradá-Lo em outra coisa, e novamente verifico que não consi­go, então discirno a operação de uma lei. Não é apenas pecado que há em mim, e, sim, uma lei de pecado; não há apenas morte, e, sim, uma lei de morte.
A gravidade não é só uma lei no sentido de que é cons­tante, não admitindo exceções, mas é também uma lei "natural" — não é matéria de discussão, mas de desco­berta. A lei está presente, e o lenço cai "naturalmente", por si mesmo, sem qualquer auxílio da minha parte. E a lei descoberta pelo homem, em Rm 7.23, é exatamente igual aquela. É uma lei de pecado e de morte, que se opõe àquilo que é bom, e que paralisa a vontade do ho­mem quanto ao fazer o bem. Ele peca "naturalmente", segundo a "lei do pecado" nos seus membros. Ele quer ser diferente, mas a lei que nele opera é implacável e não há vontade que possa resistir a ela. Isto nos leva a pergun­tar: Como posso eu ser libertado da lei do pecado e da morte? Necessito de libertação do pecado, e ainda mais, de libertação da morte; acima de tudo, careço de liberta­ção da lei do pecado e da morte. Como posso ficar livre da constante repetição de fraqueza e fracasso? Acaba­mos de considerar a lei da gravidade, para então aplicá-la à resposta a esta pergunta.
Como pode ser anulada a lei da gravidade? Em rela­ção ao meu lenço, aquela lei atua de maneira evidente, puxando-o para baixo. Todavia, apenas tenho que colo­car a mão debaixo do lenço para que ele não caia. Por que? A lei ainda está presente. Eu não interfiro com a lei da gravidade, e nem sequer posso. Então, por que não cai o meu lenço ao chão? Porque há um poder que o impede de cair. A lei continua em vigor, mas há outra, superior à primeira, que opera para sobrepujá-la, ou seja, a lei da vida. A gravidade pode exercer seu esforço máxi­mo, mas o lenço não cairá, porque outra lei, operando contra a lei da gravidade, o sustenta. Todos temos visto uma árvore que certa vez era uma pequena semente caí­da pelos interstícios de uma calçada, e que cresceu até que pesados blocos foram levantados pelo poder da vida dentro dela. É isto que queremos dizer ao falar do triun­fo de uma lei sobre outra.
Do mesmo modo, Deus nos liberta de uma lei, in­troduzindo outra. A lei do pecado e da morte continua a existir, mas Deus fez operar outra lei - a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus, e esta lei é suficientemente forte para nos libertar da lei do pecado e da mor­te. É a lei de vida em Cristo Jesus - a vida ressurreta que nEle encontrou a morte, em todas as suas formas, e triun­fou sobre ela, Ef 1.19,20; agora, é Cristo que habita nos nossos corações, na pessoa do Seu Santo Espírito, e, se nos entregarmos a Ele, verificaremos que Ele nos guarda­rá da velha lei. Aprenderemos o que significa ser guarda­dos, não pelo nosso próprio poder, mas "pelo poder de Deus"(IPe 1.5).

A manifestação da lei da vida

Nem mesmo os cristãos mais experimentados enten­dem quão grande é o papel que a vontade desempenha nas suas vidas. Isto constitui parte do problema de Paulo em Romanos 7. A sua vontade era boa, mas todas as suas ações contradiziam-na e, quanto mais ele fazia for­tes resoluções no sentido de agradar a Deus, tanto mais a sua vontade o traía. "Eu quero fazer o bem", mas "sou carnal, vendido sob o pecado". Como um carro sem ga­solina, que tem que ser empurrado, e que pára logo que é deixado só, muitos cristãos procuram vencer pela força da vontade, e passam a achar a vida cristã amargamente exaustiva. Esforçam-se por ser o que não são, o que é pior do que procurar fazer a água correr colina acima, porque, afinal, o ponto mais alto que a vontade pode alcançar é o da boa vontade (Mt 26.41).
Se nossa vida cristã nos leva a exercer tanto esforço, ainda não conhecemos a natureza dela. Nossa língua materna é falada sem esforços; a força da vontade ape­nas se exerce quando se trata de fazer coisas que não fa­zemos naturalmente. Por um tempo, conseguimos fazer assim, mas a lei do pecado e da morte acaba vencendo. Talvez possamos dizer: "O querer está em mim e faço o que é bom durante uma quinzena", mas, finalmente, teremos que confessar: "Não consigo realizar o bem".
Por que, então, as pessoas procuram agradar a Deus pela força da sua vontade? Ou nunca nasceram de novo e neste caso não têm vida nova a que recorrer; ou nasce­ram de novo, possuem a vida nova, mas ainda não apren­deram a confiar nela. É esta falta de entendimento que (*), colocando-nos em situação de quase abandonar a esperança de que haja coisa melhor para nós.
Não é nossa falta de crer devidamente que significa que a frágil vida que intermitentemente experimentamos seja tudo quanto Deus nos ofereceu. Rm 6.23 declara: "o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor", e em Rm 8.2 lemos: "a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus" veio em nosso auxílio. Assim, Rm 8.2 não fala de um novo dom, e sim, da vida já refe­rida em Rm 6.23. Noutras palavras, é uma nova revela­ção daquilo que já temos. Isto é importante: não é algo novo que recebemos da mão de Deus, mas uma nova re­velação do que Ele já nos deu. É uma nova descoberta da obra já realizada por Cristo, já que o verbo "livrou" está no passado. Se eu realmente crer e colocar nEle a minha fé, não haverá, no meu caso, qualquer necessida­de de Romanos 7 se repetir.
Se abdicarmos das nossas próprias vontades e confiar­mos nEle, não cairemos por terra, e sim, ficaremos no ambiente de uma lei diferente, a lei do Espírito de vida, porque Deus nos deu não só a vida, como também uma lei de vida. Assim como a lei da gravidade é uma lei na­tural, e não o resultado da legislação humana, assim tam­bém a lei da vida é uma lei "natural", semelhante, em princípio, à lei que mantém em funcionamento o nosso coração, ou que dirige o movimento das nossas pálpebras. Não é necessário pensarmos nos olhos, nem resolvermos pestanejar várias vezes para conservá-los limpos; muito menos podemos fazer com que a nossa vontade atue so­bre o coração. Realmente, se o fizéssemos, podíamos causar-lhes mais prejuízo do que auxiliá-lo. Não, enquan­to tiver vida, o coração trabalhará espontaneamente. As nossas vontades apenas estorvam a lei da vida. Descobri esta verdade da seguinte maneira:
Habitualmente sofria de insônia; certa vez, após várias noites sem dormir, depois de ter orado muito sobre o assunto e de ter esgotado todos os meus recursos, con­fessei finalmente a Deus que a falta devia ser minha e pedi-Lhe que me explicasse o que havia de errado. A Sua resposta foi: "Crê nas leis naturais". O sono é uma lei tanto quanto a fome, e passei a notar que, embora nunca me ocorresse afligir-me quanto a sentir fome ou não, estava aflito e inquieto quanto a ter sono. Procurava aju­dar a natureza, o que é o problema principal de muitas pessoas que sofrem de insônia. Assim, passei a confiar em Deus e na lei divina da natureza, e dormi bem.
Não devemos ler a Bíblia? Evidentemente que sim, senão a nossa vida espiritual sofrerá. Mas isto não signifi­ca que devemos nos forçar a lê-la. Há em nós uma nova lei que nos faz sentir fome dela. Em tais circunstâncias, meia hora pode ser mais proveitosa do que cinco horas de leitura imposta. O mesmo se pode dizer das nossas ofertas, da nossa pregação, do nosso testemunho. A pre­gação forçada pode resultar em anunciar-se com coração frio um evangelho ardente, e todos sabemos o que quer dizer "caridade fria".
Se entregarmos a nossa vida à nova lei, teremos menos consciência da lei velha, que, embora continue a existir, já não nos governa, e já não somos presa sua. É por isso que o Senhor diz em Mateus 6: "Observai as aves... con­siderai os lírios". Se pudéssemos perguntar às aves se não têm medo da lei da gravidade, talvez diriam: "Nunca ouvimos falar em Newton, e nada sabemos acerca da sua lei. Voamos porque é essa a lei da nossa vida". Não so­mente têm a capacidade de voar, como possuem uma vi­da cuja lei habilita-as a vencer a lei da gravidade de ma­neira absolutamente espontânea. A gravidade permanece, mas enquanto as aves vivem, vencem-na, e é a vida que nelas há que sobrepuja seu conhecimento das leis.
Deus tem sido verdadeiramente gracioso para conos­co. Deu-nos esta nova lei do Espírito, e para "voarmos" não é mais questão da nossa vontade e, sim, da Sua vida. Já notou como é difícil tornar paciente um cristão impa­ciente? Exigir paciência da parte dele é quase fazê-lo so­frer um ataque de depressão. Deus, porém, nunca man­dou esforçar-nos por ser o que não somos naturalmente, a fim de procurarmos aumentar a nossa estatura espiri­tual. A aflição e a inquietação talvez possam diminuir a altura de um homem, mas nunca poderão aumentá-la.
"Não andeis ansiosos... Considerai como crescem os lí­rios do campo". Desta maneira, Cristo quer chamar a nossa atenção à nova lei de vida em nós. Oxalá possamos ter um novo conceito da vida que nos pertence!
Que preciosa descoberta é esta! Pode fazer de nós ho­mens completamente novos, porque opera nas coisas mí­nimas como nas máximas. Corrige-nos quando, por exem­plo, estendemos a mão para um livro que se encontra no quarto de alguém, lembrando-nos que não pedimos licen­ça e por isso não temos o direito de fazê-lo. Não pode­mos abusar dos direitos dos outros, nos ensina o Espírito Santo.
Tomemos o exemplo do falar demais. Você é uma pessoa de muitas palavras? Quando está no meio de outras pessoas, diz para si mesmo: "O que devo fazer? Como crente que quer glorificar o nome do Senhor, de­vo controlar a minha língua. Portanto, vou fazer um esforço especial para me conter? " E durante uma hora ou duas alcança êxito — até que, por um pretexto qual­quer, perde o domínio próprio e, antes que haja cons­ciência do que está acontecendo, acha-se de novo em di­ficuldades com a sua língua tagarela. Sim, não tenhamos dúvidas quanto à inutilidade da vontade quanto a isso. Se eu o exortasse a exercer a sua vontade neste assunto, estaria oferecendo-lhe a religião vã deste mundo, e não a vida que há em Cristo Jesus. Uma pessoa tagarela, afinal de contas, continua a sê-la mesmo quando se conserva calada o dia todo, porque a lei "natural" da tagarelice ainda a governa, assim como o pessegueiro continua sen­do pessegueiro mesmo quando não está produzindo pês­segos. Como crentes, porém, descobrimos uma nova lei em nós, a lei do Espírito da vida, que transcende tudo o mais e que já nos libertou da "lei" da nossa loquacidade. Se, crendo na Palavra do Senhor, nos rendermos àquela nova lei, ela nos ensinará quando devemos interromper a nossa conversa — ou nem sequer iniciá-la! — e nos dará poder para fazê-lo. Assim, você pode ir à casa do seu amigo e passar algumas horas ou até alguns dias com ele, sem experimentar dificuldades. De regresso, dará graças a Deus por esta lei da vida.
A vida cristã é esta vida espontânea. Manifesta-se em amor pelos que não são agradáveis - pelo irmão de quem, no plano de vida natural, não gostaríamos e que certamente não amaríamos. Opera na base de como o Senhor considera aquele irmão. "Senhor, Tu vês que ele é amável e Tu o amas. Ama-o, agora, por meio da minha pessoa!" Esta lei da vida cristã se manifesta na realidade — em caráter moral absolutamente genuíno. Há hipocrisia e representação demais na vida dos crentes. Nada destrói mais a eficiência do testemunho cristão do que fingir-se algo que não corresponde à realidade, porque o homem da rua sempre acaba penetrando a máscara e des­cobrindo o que realmente somos. Sim, o fingimento cede lugar à realidade uma vez que confiantemente depende­mos da lei da vida.

O quarto passo: "Andai no Espírito"

"Porquanto, o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pe­cado. A fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espí­rito" (Rm 8.3,4).
Quem lê com atenção estes dois versículos percebe que aqui há dois assuntos: em primeiro lugar, o que o Se­nhor Jesus fez por nós e, em segundo lugar, o que o Espí­rito Santo fará em nós. A "carne" é "enferma", portan­to, os preceitos da lei não podem ser cumpridos em nós "segundo a carne". (Lembremo-nos de que queremos tra­tar aqui da questão de agradar a Deus, e não da questão da salvação). Ora, por causa da nossa incapacidade, Deus deu dois passos. Em primeiro lugar, interveio para tratar do âmago do nosso problema, enviando o Seu Filho, na carne, que morreu pelo pecado e, ao fazê-lo, "condenou, na carne, o pecado". Isto quer dizer que, como nosso Re­presentante, levou à morte tudo quanto em nós existe que pertencia à velha criação, quer lhe chamemos "o nos­so velho homem", "a carne", ou o "Eu" carnal. Deus desferiu assim um golpe bem na raiz do nosso problema, removendo deste modo a razão de ser, fundamental, da nossa fraqueza. Este foi o primeiro passo.
Contudo, "o preceito da lei" ainda estava para ser cumprido "em nós". Como podia isto ser feito? Tornou-se necessária a nova provisão de Deus: a do Espírito San­to que veio habitar em nós. Ele é enviado para cuidar do aspecto interior deste assunto, e Ele realiza esta obra em nós na medida em que "andamos no Espírito".
O que significa andar no Espírito? Significa duas coi­sas. Primeiramente, não é um trabalho, é um andar. Gra­ças a Deus, o esforço, opressivo e infrutífero, que eu fa­zia quando procurava "na carne" agradar a Deus, dá lu­gar à dependência bendita da Sua "eficácia, que opera eficientemente em mim" (Cl 1.29). É por esta razão que Paulo contrasta as "obras" da carne com o "fruto" do Espírito (Gl 5.19,22).
Em segundo lugar, "andar no Espírito" implica sujei­ção a Ele. Andar segundo a carne significa que me sub­meto aos ditames da carne, e os versículos seguintes, Rm 8.5-8, mostram para onde essa atitude me conduz. Só me levará a conflitos com Deus. Andar no Espírito é estar sujeito ao Espírito; quem anda nEle de modo ne­nhum pode agir de maneira independente dEle. Eu devo estar sujeito ao Espírito Santo. As iniciativas da minha vida devem ficar com Ele. Somente na medida em que me submeto a Ele para Lhe obedecer é que verei em ple­na operação "a lei do Espírito da vida", bem como o cumprimento do "preceito da lei" (tudo o que procuro fazer para agradar a Deus) - já não por mim, mas em mim. "Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus" (Rm 8.14).
Todos estamos familiarizados com as palavras da bên­ção apostólica em II Co 13.13: "A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito San­to sejam com todos vós". O amor de Deus é a fonte de toda a bênção espiritual; a graça do Senhor Jesus trans­mitiu a nós as riquezas espirituais; e o Espírito Santo produz a comunhão que desfrutamos das bênçãos. O amor é algo escondido no coração de Deus; a graça é este amor expressado e colocado ao nosso dispor pelo Filho; a comunhão é a obra do Espírito em nos comunicar esta graça. O que o Pai projetou para nós, o Filho cumpriu e realizou em nosso favor, e agora o Espírito o comunica e transmite a nós. Portanto, quando descobrimos algo no­vo que o Senhor Jesus alcançou para nós na Sua Cruz, devemos tomar atitude firme de sujeição e obediência ao Espírito Santo, e assim estará aberto o caminho pelo qual Ele possa concretizar isto em nossa experiência, transmitindo-o a nós. É este o Seu ministério, é com este propó­sito que veio — para fazer com que tudo quanto é nosso em Cristo venha a ser uma realidade em nossa vida.
Na China já aprendemos que, quando levamos uma alma a Cristo, devemos fazer um trabalho muito comple­to, porque não há certeza de quando ela voltará a rece­ber auxílio de outro cristão. Sempre procuramos deixar bem claro na mente de um novo crente que, quando pe­diu ao Senhor o perdão dos seus pecados e que entrasse na sua vida, o seu coração tornou-se a residência de uma Pessoa viva. O Espírito Santo de Deus está agora dentro dele, para lhe abrir as Escrituras, a fim de que possa che­gar a ver Cristo nelas, para dirigir a sua oração, governar a sua vida, e reproduzir nele o caráter do seu Senhor.
Muitos de nós sabemos que Cristo é a nossa vida. Cre­mos que o Espírito de Deus reside em nós, mas este fato tem pequeno efeito no nosso comportamento. A ques­tão é: conhecemo-Lo como uma Pessoa viva, e conhecemo-Lo como Senhor da nossa vida, que nos orienta dia­riamente?


11

Um corpo em Cristo

Antes de passarmos ao nosso último assunto principal, resumiremos o que já foi dito. Procuramos explicar de ma­neira clara e simples algumas experiências pelas quais os cristãos habitualmente passam. Mesmo assim, cada cris­tão faz muitas descobertas enquanto anda com o Senhor, e devemos evitar cuidadosamente a tentação de simplifi­car demais a obra de Deus em nós, porque isto pode nos levar a sérios embaraços.
Há filhos de Deus que crêem que toda a nossa salva­ção, inclusive a questão de se levar uma vida santa, de­pende de apreciarmos devidamente o valor do precioso Sangue. Ressaltam, com razão, a importância de se acer­tar contas com Deus imediatamente, no que se refere a pecados específicos conhecidos, e a contínua eficácia do Sangue em lavar os pecados cometidos, mas consideram que o Sangue opera tudo. Crêem numa santidade que realmente apenas significa a separação do homem do seu passado; crêem que, pela purificação do que têm feito até então, por meio do Sangue derramado, Deus separa um homem do mundo para ser Seu, e isso é santidade; e param aqui. Deste modo, ficam aquém das exigências bá­sicas de Deus, e, assim, aquém da plena provisão que Ele nos oferece. Penso que já percebemos claramente a insu­ficiência deste conceito.
Há, então, os que vão mais longe e percebem que Deus os inclui na morte do Seu Filho na Cruz, a fim de libertá-los do pecado e da Lei, liquidando o assunto do velho homem. Estes são os que realmente exercem fé no Senhor, porque se gloriam em Cristo Jesus e cessam de confiar na carne, Fp. 3.3. E, a partir daqui, muitos foram ainda mais longe, reconhecendo que a consagração signi­fica entregar-se incondicionalmente nas Suas mãos, seguindo-O. Todos estes passos são iniciais e, partindo de­les, já tocamos em outras fases de experiência que Deus nos oferece e que muitos já conhecem. É sempre essen­cial que nos recordemos que, embora cada uma delas seja um precioso fragmento da verdade, nenhuma é, por si só, a verdade total. Todas estas experiências nos sobrevêm como fruto da obra de Cristo na Cruz, e não podemos permitir que descuidemos de qualquer delas.

Uma porta e um caminho

Reconhecendo que há várias fases deste tipo na vida e experiências do crente, devemos notar agora que embora tais fases nem sempre ocorram em ordem precisa e fixa, parecem ser assinaladas por certos passos ou característi­cas que se repetem. Quais são estes passos? Primeiro, te­mos a revelação. Como já vimos, esta sempre precede a fé e a experiência. Por meio da Sua Palavra, Deus nos abre os olhos para a veracidade de algum fato relaciona­do com Seu Filho e somente depois, na medida em que aceitamos esse fato para nós próprios, é que se toma uma experiência real em nossas vidas. Assim, temos:
1. Revelação (Objetiva).
2. Experiência (Subjetiva)
Além disso, notamos que tal experiência tem, habi­tualmente, a forma dupla de uma crise que conduz a um progresso contínuo. É de grande auxílio pensar neste assunto em termos das expressões de João Bunyan: "En­trada pequena e estreita para onde os cristãos entram num caminho estreito". O nosso Senhor Jesus falou de uma porta e de um caminho assim que levam à vida (Mt 7.14), e a experiência concorda com isto. De modo que temos:
1. Revelação
2. Experiência:
a) Uma porta estreita (Crise)
b) Um caminho estreito (Processo)
Voltemos agora a alguns dos assuntos já considerados, e vejamos como esta demonstração nos ajuda a compreen­dê-los. Tomemos, em primeiro lugar, a nossa justificação e o novo nascimento. Primeiro, há uma revelação da obra de Jesus Cristo, a expiação feita na Cruz pelos nossos pe­cados; seguem-se, depois, a crise do arrependimento e a fé (a porta estreita), por meio dos quais inicialmente "chegamos perto" de Deus (Ef 2.13); e isto nos leva a andar em comunhão contínua com Ele (o caminho estreito), que depende do nosso acesso diário a Deus, baseado ainda no Sangue precioso (Hb 10.19-22).
Quando chegamos ao assunto da libertação do peca­do, temos de novo três passos: a obra de revelação do Espírito Santo, ou "sabendo" (Rm 6.6); a crise de fé, ou "considerando-se" (Rm 6.11); e o processo contínuo de consagração, ou "oferecendo-nos" a Deus (Rm 6.13), na base de andarmos em novidade de vida. Consideremos a seguir o dom do Espírito Santo. Este principia, também, com uma nova "visão" do Senhor Jesus glorificado no trono, que resulta na experiência dupla do Espírito derra­mado e da habitação interior do Espírito Santo. Avan­çando para a questão de agradar a Deus, achamos de no­vo a necessidade de iluminação espiritual, para podermos ver os valores da Cruz em relação à "carne" — a totalida­de da vida própria do homem. A nossa aceitação da mes­ma, pela fé, nos leva imediatamente à experiência da "porta estreita" (Rm 7.25) em que inicialmente cessa­mos de "fazer" e aceitamos pela fé a operação poderosa da vida de Cristo para satisfazer as exigências práticas de Deus sobre nós. Isto, por sua vez, nos leva ao "caminho estreito" de um andar em obediência ao Espírito (Rm 8.4).
O quadro não é idêntico em cada caso, e devemos, pre­caver-nos de forçar qualquer padrão rígido do trabalho do Espírito Santo; é provável, no entanto, que qualquer nova experiência nos sobrevenha mais ou menos segundo estas linhas. Certamente haverá sempre, em primeiro lu­gar, um abrir dos nossos olhos para algum novo aspecto de Cristo e da Sua obra consumada, e depois, a fé abrirá uma porta para um caminho. Lembremo-nos, também de que, ao dividir a experiência cristã em vários assuntos, tais como a justificação, o novo nascimento, o dom do Espírito, a libertação, a santificação, etc, estamos ape­nas procurando classificar e simplificar, e não quer dizer que estas fases devem seguir-se sempre uma às outras por certa ordem prescrita. Pelo contrário, se nos for feita, logo de início, uma apresentação plena de Cristo e da Sua Cruz, bem poderemos., desde o primeiro dia da nos­sa vida cristã, percorrer uma grande extensão de expe­riências, embora possa seguir-se só mais tarde uma expli­cação completa de grande parte dela. Quem dera que to­da a pregação do Evangelho fosse de tal natureza!
Uma coisa é certa: a revelação precederá sempre a fé. Quando percebemos algo que Deus fez em Cristo, a nos­sa resposta é: "Obrigado, Senhor", e a fé segue esponta­neamente. A revelação é sempre a obra do Espírito San­to, que é dado para acompanhar-nos e guiar-nos em toda a verdade (João 16.13), abrindo-nos as Escrituras. Conte­mos com Ele, porque Ele está presente para realizar justa­mente aquilo e, quando formos confrontados por dificul­dades como falta de entendimento ou falta de fé, ende­recemos estas dificuldades diretamente ao Senhor: "Se­nhor, abre os meus olhos. Senhor, esclarece-me esta coi­sa nova. Senhor, ajuda Tu a minha incredulidade". Ele não deixará de atender a nossa petição.

A quádrupla obra de Cristo na Cruz

Agora estamos prontos para avançar mais um passo e considerar quão grande é a diversidade de aspectos abran­gidos pela Cruz do Senhor Jesus Cristo. À luz da expe­riência cristã, e com fins analíticos em vista, poderá nos servir de auxílio reconhecer quatro aspectos da obra re­dentora de Deus. Porém, ao fazê-lo, é essencial ter em mente que a Cruz de Cristo é uma só obra divina, e não muitas. Uma vez, na Judéia, há dois mil anos, o Senhor Jesus morreu e ressuscitou e está agora "exaltado à des­tra de Deus" (At 2.33). A obra está consumada e jamais precisará de repetição ou acréscimo.
Dos quatro aspectos da Cruz que passaremos a citar agora, já consideramos três da maneira pormenorizada, e o último será considerado nos dois capítulos seguintes do nosso estudo. Podem ser resumidos como segue:
1. O sangue de Cristo, para tratar dos pecados e da culpa.
2. A Cruz de Cristo, para tratar do pecado, da carne e do homem natural.
3. A Vida de Cristo, colocada à disposição do homem, para residir nele, criá-lo de novo e dar-lhe poder.
4. A Operação da Morte no homem natural, a fim de que aquela Vida interior possa ser progressivamen­te manifesta.
Os dois primeiros aspectos têm efeito remediador, e visam desfazer a obra do Diabo e o pecado do homem. Os dois últimos são mais positivos: relacionam-se mais di­retamente à realização do propósito de Deus. Os dois primeiros têm em vista a recuperação do que Adão per­deu na Queda; os dois últimos visam levar-nos para den­tro de, e colocar para dentro de nós, algo que Adão nun­ca teve. Percebemos assim, que o que o Senhor Jesus rea­lizou na Sua morte e ressurreição compreende uma obra que não só proveu a redenção do homem, como também possibilitou o cumprimento do propósito de Deus.
Em capítulos anteriores, consideramos pormenoriza­damente os dois aspectos da Sua morte, representados pelo Sangue para os nossos pecados e a nossa culpa, e pe­la Cruz para o pecado e a carne. Ao considerar o propó­sito eterno, mencionamos de relance o terceiro aspecto — o que é representado por Cristo como o grão de trigo -e, no nosso último capítulo, considerando Cristo como nossa vida, falamos algo acerca do seu desenvolvimento prático. Antes, porém, de passarmos para o quarto pon­to, a que chamarei "carregar a Cruz", devemos dizer mais alguma coisa sobre este terceiro aspecto, a liberta­ção da vida de Cristo, pela ressurreição, para residir no homem e dar-lhe poder para o serviço.
Falando do propósito de Deus na criação, já dissemos que este abrangia muito mais do que aquilo que Adão chegou a usufruir. Que propósito foi esse? Deus desejou ter uma raça de homens, cujos membros fossem dotados de um espírito, por meio do qual seria possível a comu­nhão com Ele mesmo, que é Espírito. Aquela raça, possuindo a própria vida de Deus, deveria cooperar no cum­primento do Seu objetivo proposto,derrotando o inimi­go em cada levante que ele fizer, e desfazendo as suas obras más. Foi este o grande plano. Como será cumprido agora? Mais uma vez, a resposta se acha na morte de Cristo Jesus. É uma morte potente. É algo positivo, re­vestido de propósito, indo muito além da recuperação de uma posição perdida: porque, por ela, não somente se trata do pecado e do velho homem, como também se introduz algo infinitamente maior.

O amor de Cristo

Devemos ter agora diante de nós dois trechos da Pala­vra, um de Gênesis 2, e outro de Efésios 5, que são de grande importância neste aspecto.
"Então o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu: tomou uma das suas costelas, e fechou o lugar com carne. E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher, e lha trouxe. E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa (Hebraico ishshah), porque do varão (Hebraico ish) foi tomada" (Gn 2.21-23).
"Maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja glo­riosa, sem mácula, nem ruga, nem cousa semelhante, po­rém santa e sem defeito" (Ef 5.25-27).
Efésios 5 é o único capítulo na Bíblia que explica a passagem em Gênesis 2. O que se nos apresenta em Efé­sios é realmente notável, se refletirmos nisso. Refiro-me à expressão: "Cristo amou a igreja", verdade sumamente preciosa.
Temos sido ensinados a pensar de nós mesmos como pecadores que precisamos de redenção, verdade que tem sido inculcada durante gerações, e damos graças a Deus por este ponto de partida, mas não é isso que Deus tem em vista como o Seu objetivo final. Deus fala aqui, antes, de uma "igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito". Temos pensa­do demasiadamente na igreja como sendo meramente constituída por muitos "pecadores salvos", que de fato é, como se a Igreja fosse somente isso, o que não é o ca­so. A expressão "pecadores salvos" se relaciona com a história do pecado e da Queda; aos olhos de Deus, porém, a Igreja é uma criação divina no Seu Filho. O primeiro conceito é principalmente individual, o outro, coletivo. A perspectiva do primeiro é negativa, e pertence ao pas­sado; a do outro é positiva, visando o futuro. O "propó­sito eterno" é algo que está na mente de Deus, desde a eternidade, relativamente ao Seu Filho, e tem como objetivo que o Filho tenha um Corpo para expressar a Sua vida. Encarada deste ponto de vista — o ponto de vista do coração de Deus — a Igreja está para além do pe­cado e jamais foi tocada pelo pecado.
Em Efésios temos, portanto, um aspecto da morte de Cristo que não aparece tão claramente em outros trechos. Em Romanos, as coisas são encaradas do ponto de vista do homem caído e, principiando com o fato de que Cris­to morreu pelos pecadores e inimigos, os ímpios (Rm 5), somos levados progressivamente ao "amor de Cristo" (Rm 8.35). Em Efésios, por outro lado, o ponto de vista é de Deus, "antes da fundação do mundo" (Ef 1.4), e o coração do Evangelho é: "Cristo amou a igreja e a si mes­mo se entregou por ela" (Ef 5.25). Assim, em Romanos, a tecla é: "nós pecamos", e a mensagem é a do amor de Deus pelos pecadores (Rm 5.8), enquanto em Efésios a nota é: "Cristo amou", e o amor aqui é o do marido pela esposa. Este tipo de amor, fundamentalmente, nada tem a ver com o pecado, como tal. O que está em vista, nesta passagem, não é a expiação pelo pecado, mas a criação da Igreja, propósito com que, segundo aqui se afirma, Ele "a si mesmo se entregou por ela".
Há, portanto, um aspecto da morte do Senhor Jesus que é inteiramente positivo e, sobretudo, uma questão de amor pela Sua Igreja, em que não figura diretamente o assunto do pecado e dos pecadores. Para nos familiari­zar com isso, Paulo toma como ilustração o incidente em Gênesis 2. Esta é uma das coisas maravilhosas da Palavra, e, se os nossos olhos tiverem sido abertos para vê-la, cer­tamente adoraremos a Deus.
De Gênesis 3 em diante, desde as "túnicas de peles" ao sacrifício de Abel, e daí em diante, por todo o Antigo Testamento, há numerosos tipos que prenunciam a mor­te do Senhor Jesus como expiação pelo pecado. Todavia, o apóstolo não se refere aqui a qualquer deles, senão este em Gênesis 2. Notemos que foi só no capítulo 3 que o pecado entrou. Há um tipo da morte de Cristo no Antigo Testamento que nada tem a ver com o pecado, porque não é subseqüente à Queda, mas anterior a ela. É este o tipo que encontramos em Gênesis 2, e que vamos consi­derar.
Pode-se dizer que Adão foi adormecido porque Eva cometera um pecado sério? É isso que encontramos aqui? Certamente que não, porque Eva nem mesmo fora criada. Ainda não havia tais questões e problemas de ordem mo­ral. Não, Adão foi adormecido com o expresso propósito de se tirar dele algo que seria transformado em um novo ser. Não foi o pecado dela, e sim, a sua existência que estava em jogo neste sono. É isto que estes versículos ensinam. Esta experiência de Adão teve como propósito a criação de Eva conforme o que fora determinado no Conselho Divino. Deus, para produzir uma ishshah, fez cair um sono sobre o homem (ish), tomou uma das suas costelas e transformou-a em ISHSHAH (mulher), e trou­xe-a ao homem. É este o quadro que Deus nos oferece. Prefigura um aspecto da morte do Senhor Jesus que, primariamente, não é para expiação, mas que correspon­de ao sono de Adão neste capítulo.
Deus me livre de sugerir que o Senhor Jesus não mor­reu com o propósito de fazer expiação pelos pecados; dou graças a Deus porque Ele a fez. Devemos nos lem­brar, porém, de que agora estamos em Efésios 5, e não em Gênesis 2. Efésios foi escrito depois da Queda, a homens que tinham sofrido os seus efeitos, e temos aqui não só os propósitos de Deus na Criação, mas também as cicatri­zes da Queda — ou, do contrário, não seria necessário mencionar "sem mácula, nem ruga". Porque ainda esta­mos na terra e a Queda é uma realidade histórica, sendo, portanto, necessária a nossa "purificação".
Mesmo assim, devemos sempre considerar a redenção como uma interrupção, uma medida de "emergência" que se tornou necessária pelo rompimento catastrófico da linha reta do propósito de Deus. A redenção é algo tão grandioso e maravilhoso para ocupar grande parte do nos­so horizonte, mas Deus pós mostra que não devemos con­siderar a redenção como sendo tudo, como se o homem tivesse sido criado para ser redimido. A Queda, na reali­dade, é um trágico desvio, para baixo, daquela linha reta do propósito divino, e a expiação é a recuperação aben­çoada por meio da qual os nossos pecados são apagados e nós somos restaurados. Uma vez consumada, porém, ainda resta uma obra a ser feita, a fim de que nós receba­mos aquilo que Adão nunca possuiu, e que Deus receba o que o Seu coração deseja, porque Deus nunca abando­nou o propósito representado por aquela linha reta. Adão nunca entrou na posse daquela plenitude da vida de Deus que a árvore da vida representava. Mas, pela obra de Jesus Cristo na Sua morte e ressurreição (e devemos sublinhar que a obra é uma só), a Sua vida se tornou disponível a nós, e assim, pela fé, recebemos mais do que Adão já pos­suiu. Quando recebemos Cristo como a nossa vida, o pro­pósito de Deus já vai se cumprindo.
Adão foi adormecido, e diz-se a respeito dos crentes, que adormecem, e não que morrem. Por que? Porque quando se menciona a morte, pensa-se no pecado como seu pano de fundo. Segundo Gênesis 3, o pecado entrou no mundo e a morte pelo pecado, mas o sono de Adão precedeu este fato. Por isso, o Senhor Jesus aqui é tipifi­cado de maneira diferente do que em qualquer outro ti­po no Antigo Testamento. Em relação ao pecado e à expiação, há um cordeiro ou um bezerro morto. Aqui, porém, Adão não foi morto, e sim, meramente adorme­cido para então despertar novamente. Prefigura assim uma morte que não é por causa do pecado, mas que tem em vista a reprodução pela ressurreição. Devemos tam­bém notar que Eva não foi criada como uma entidade se­parada, por uma criação separada, paralela à de Adão. Adão adormeceu e Eva foi criada de Adão. É este o método de Deus em relação à Igreja. O "segundo Homem" de Deus foi despertado do Seu "sono" e a Sua Igreja é criada nEle e dEle, para derivar a sua vida dEle e manifes­tar essa vida ressurreta.
Deus tem um Filho Unigênito e quer que Ele tenha irmãos, passando então a ser o Primogênito entre muitos filhos de Deus. Um grão de trigo morreu, e, em seu lugar, surgiram muitos grãos. O primeiro grão era o único, mas agora é o primeiro entre muitos. O Senhor Jesus deu a Sua vida, e essa vida se manifestou em muitas vidas. São estas as figuras bíblicas que empregamos até aqui no nos­so estudo, para expressar esta verdade. Agora, na figura que acabamos de considerar, o singular toma o lugar do plural. O resultado, fruto e expressão da Cruz é uma úni­ca pessoa: uma Noiva para o Filho. Cristo amou a igreja e a Si mesmo Se deu por ela.

Um sacrifício vivo

Já dissemos que há em Efésios 5 um aspecto da morte de Cristo que, até certo ponto, é diferente daquele que já estudamos em Romanos. Contudo, este aspecto é real­mente o que visa nosso estudo de Romanos, e veremos que é nesta direção que Romanos nos leva, já que a re­denção nos leva de volta ao propósito original de Deus.
No capítulo 8, Paulo diz que Cristo é Filho primogê­nito entre muitos "filhos de Deus" (Rm 8.14), guiados pelo Espírito."Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou" (Rm 8.29, 30). Aqui vemos que a justificação leva à glória, glória que se expressa, não em um ou mais indivíduos, mas nu­ma pluralidade: em muitos que manifestam a imagem de Um. Este alvo da nossa redenção é, além disso, expresso no "amor de Cristo" pelos que são Seus, descrito nos últimos versículos do capítulo (8.35-39). O que está implícito aqui se torna explícito quando passamos ao ca­pítulo 12, que trata do Corpo de Cristo.
Depois dos oito capítulos iniciais de Romanos já estu­dados aqui, segue-se um parêntese em que se consideram as relações soberanas de Deus com Israel, antes de se vol­tar ao tema dos capítulos originais. Assim, para o nosso propósito atual, o argumento do capítulo 12 segue o do capítulo 8 e não o do capítulo 11. Poderíamos fazer um resumo em conjunto destes capítulos, de maneira muito simples: Os nossos pecados são perdoados (cap. 5), esta­mos mortos com Cristo (cap. 6), por natureza estamos totalmente incapacitados (cap. 7), portanto, dependemos do Espírito Santo que em nós reside (cap. 8), em conse­qüência do que "somos um corpo em Cristo" (cap. 12). E como se isto fosse o resultado e a expressão de tudo o que precedeu, e o alvo visado desde o princípio.
Romanos 12 e os capítulos seguintes contêm algumas ilustrações muito práticas para a nossa vida e o nosso an­dar. Estas são introduzidas com uma ênfase repetida que se dá à consagração. Em 6.13, Paulo diz: "Oferecei-vos a Deus, como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus como instrumentos de justiça". Mas agora, no capítulo 12.1, a ênfase é um pouco diferente: "Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis os vossos corpos a Deus por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional". Neste novo apelo à consagração, somos chamados "irmãos", ou seja, há um relacionamento mental com os "muitos irmãos" de 8.29. O apelo visa que façamos, num passo unido de fé, a apresentação dos nossos corpos como "sacrifício vivo" a Deus.
Isto vai além do meramente individual, porque impli­ca a contribuição a um todo. O "oferecimento" é indivi­dual e pessoal, mas o "sacrifício" é coletivo; é um só sa­crifício. Nunca devemos sentir que a nossa contribuição é desnecessária, porque se contribui para o serviço a Deus, Ele fica satisfeito. É no culto e no servir que experimen­tamos "qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus" (12.2), ou, noutras palavras, compreendemos o propósito eterno de Deus em Cristo Jesus. Assim, o ape­lo de Paulo a "cada um dentre vós" (12.3) está à luz des­te fato divino, que "nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo, e membros uns dos outros" (12.5) e é nesta base que se seguem as instruções práticas.
O vaso através de que o Senhor Jesus pode revelar-Se a esta geração não é indivíduo, e, sim, o Corpo. Deus re­partiu a cada um segundo a medida da fé (Rm 12.3) mas, só e isolado, o homem nunca pode cumprir o propósito de Deus. E necessário um Corpo completo para atingir a estatura de Cristo e manifestar a Sua glória. Oxalá pudés­semos verdadeiramente sentir isto!
Assim sendo, Romanos 12.3-6 tira da ilustração do corpo humano a lição da nossa interdependência. Os cris­tãos individuais não são o Corpo; são membros do Corpo, e, num corpo humano, os membros não têm todos a mes­ma função. O ouvido não deve imaginar-se olho. Nenhu­ma oração pode fazer com que o ouvido veja, mas, atra­vés do olho, o corpo inteiro poderá ver. Assim, figurativamente falando, talvez tenha apenas o dom de ouvir, mas posso ver através de outros que têm o dom da vista; ou, talvez posso andar, mas não possa trabalhar, de modo que recebo ajuda das mãos.
Este não é apenas um pensamento consolador: é um fator vital na vida do povo de Deus. Não podemos pros­seguir uns sem os outros. É por esta razão que a comu­nhão pela oração é tão importante. A oração em conjun­to nos oferece o auxílio do Corpo inteiro, como se vê em Mt 18.19,20. Confiar no Senhor, por si só, talvez não se­ja suficiente: devo reunir minha confiança à de outros irmãos. Devo aprender a orar o "Pai nosso..." na base da unidade do Corpo, porque sem o auxílio do Corpo não posso prevalecer e triunfar. Isto se torna ainda mais evi­dente na esfera do serviço. Sozinho não posso servir efici­entemente ao Senhor, e Ele tudo fará para me ensinar esta verdade. Ele porá termo a certas coisas, permitindo que se fechem portas e deixando-me redobrar em vão os meus esforços, até que eu compreenda que necessito do auxílio do Corpo, assim como preciso do Senhor. A vida de Cristo é a vida do Corpo, e os Seus dons nos são con­cedidos para que contribuamos à edificação do Corpo.
O Corpo não é uma ilustração e, sim, uma realidade. A Bíblia não diz apenas que a Igreja é como um corpo; diz que é o Corpo de Cristo. "Nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros". Todos os membros juntos formam o Corpo, por­que todos participam da vida dEle — como se Ele mes­mo fosse distribuído entre os Seus membros. Encontra­va-me certa vez com um grupo de crentes chineses que achavam muito difícil compreender como o Corpo pode ser um quando os membros são homens e mulheres indi­viduais e separados. Certo domingo, estava para partir o pão à Mesa do Senhor, e pedi-lhes que olhassem muito bem o pão antes de este ser partido. Então, depois de o pão ter sido distribuído e comido, fiz notar que, embora ele estivesse dentro de cada um deles, ainda era um só pão, e não muitos. O pão estava dividido, mas Cristo não está dividido, nem sequer no sentido em que foi partido o pão. Ele continua sendo Espírito em nós, e nós todos somos um nEle.
Esta condição é a oposta do homem natural. Em Adão, eu tenho a vida de Adão, mas esta vida é essencialmente individual. No pecado, não existe união, nem comunhão: Há apenas o interesse próprio, e a desconfiança dos outros. Na medida em que prossigo com o Senhor, passo a ver que não somente deve ser considerado e resolvido o problema do meu pecado e da minha força natural, co­mo também o problema criado pela minha vida "indivi­dual", a vida que é suficiente em si mesma e que não re­conhece precisar do Corpo e de ser unida a Ele. Talvez tenha solucionado os problemas do pecado e da carne sem, contudo, deixar de ser um individualista convicto. Desejo para mim mesmo, pessoal e individualmente, a vi­tória e a vida frutífera, sem dúvida pelos mais puros mo­tivos; tal atitude, porém, não leva em conta o Corpo, não podendo, portanto, dar satisfação a Deus. Nesta questão também, é mister que Ele faça com que eu sinta a Sua vontade, senão, permanecerei em conflito com os Seus objetivos. Deus não me censura por ser um indivíduo, e, sim, pelo meu individualismo. O Seu maior problema não são as divisões exteriores e as denominações que di­videm a Sua Igreja, e, sim, os nossos próprios corações individualistas.
Sim, quanto a esta questão, a Cruz tem que fazer a sua obra, fazendo-me lembrar que, em Cristo, eu morri paia aquela antiga vida de independência que herdei de Adão, e que, pela ressurreição, não me tornei apenas um crente individual em Cristo, mas também um membro do Seu Corpo. Há uma vasta diferença entre as duas po­sições. Quando percebo isto, imediatamente deixo de la­do esta vida de independência, e procuro a comunhão. A vida de Cristo em mim gravitará para a vida de Cristo nos outros. Já não possuo ponto de vista individualista. Os ciúmes se desvanecem. A competição cessa. Acaba-se a obra particular Já não importam os meus interesses, as minhas ambições, as minhas preferências. Já não importa qual de nós realiza a obra. O que interessa é que o Corpo cresça.
Eu disse: "Quando percebo isto..." É esta a grande necessidade: perceber o Corpo de Cristo como outro grande fato divino; ter profundamente gravado em nosso espírito, por revelação celestial, que "nós, conquanto muitos, somos um só Corpo em Cristo". Somente o Espí­rito pode nos revelar isto, intimamente, em todo o seu significado e, quando o fizer, isso revolucionará a nossa vida e a nossa obra.

Mais de que vencedores por meio dEle.

Nós só vemos a história a partir da Queda. Deus a vê desde o princípio. Havia na mente de Deus um plano antes da Queda, e nos tempos vindouros isso será plena­mente compreendido. Deus conhecia tudo a respeito do pecado e da redenção. Todavia, no Seu grande propósito para a Igreja, expresso em Gênesis 2, não há perspectiva do pecado. É como se (para falar em termos finitos) Ele saltasse em pensamento por cima de toda a história da redenção e visse a Igreja na eternidade futura, tendo um ministério e uma história (futura) que está inteiramente separada do pecado e é totalmente de Deus. É o Corpo de Cristo na glória, não expressando qualquer coisa do homem caído mas somente o que é a imagem do glorificado Filho do homem. Esta é a Igreja que satisfez o co­ração de Deus e que alcançou domínio.
Em Efésios 5, encontramo-nos dentro da história da redenção e, contudo, pela graça, ainda temos em vista este propósito eterno de Deus de apresentar a Si mesmo, Igreja gloriosa. Notemos, porém, que a Igreja, agora cor­rompida pela Queda, precisa da água da vida e da Palavra purificadora para a sua apresentação a Cristo, em glória, porque agora há defeitos para remediar e feridas para curar. Mesmo assim, quão preciosa é a promessa e quão graciosas as palavras usadas a respeito dela: "Sem mácu­la" — as cicatrizes do pecado, cuja história está agora esquecida; "nem ruga" — as marcas da idade e do tempo perdido, porque agora tudo é refeito e tudo é novo; "sem defeito" — de modo que nem Satanás, nem os de­mônios, nem os homens podem descobrir qualquer razão ou motivo para censurá-la.
É aqui que nos encontramos agora. A era está chegan­do ao fim, e o poder de Satanás é maior do que nunca. A nossa luta é contra anjos, principados e potestades (Rm 8.38; Ef 6.12) que estão resolutos na sua oposição à obra de Deus em nós, e que querem destruí-la, lançan­do muitas acusações contra os eleitos de Deus. Sozinhos, nunca poderíamos vencê-los, mas o que não podemos fa­zer sozinhos, pode a Igreja fazê-lo. O pecado, a depen­dência própria e o individualismo foram os golpes de mestre que Satanás desferiu no coração dos propósitos de Deus para o homem, e, na Cruz, Deus neutralizou-os. Na medida em que pomos a nossa fé no que Ele fez -em "Deus, que justifica" e em "Cristo Jesus que morreu' (Rm 8.33,34) — apresentamos uma frente contra a qual as próprias portas do Inferno não prevalecerão. Nós, a Sua Igreja, somos "mais que vencedores por Aquele que nos amou" (Rm 8. 37).


12

A cruz e a vida da alma

Deus, por meio da Cruz de Cristo, fez plena provisão para a nossa redenção, mas não Se deteve aí. Nessa Cruz, Ele também assegurou, além de toda a possibilidade de fracasso, aquele plano eterno de que Paulo fala como sen­do, desde todos os tempos, "oculto em Deus, que criou todas as coisas". Proclamou esse plano "para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conheci­da agora dos principados e potestades nos lugares celes­tiais, segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus nosso Senhor" (Ef 3.9-11).
Já dissemos que a obra da Cruz tem duas conseqüên­cias que dizem respeito diretamente à realização daquele propósito em nós. Por um lado, resultou na Sua vida ser liberada a fim de ser concedida a nós, para que possa ma­nifestar-se e expressar-se em nós por meio do Espírito Santo, que em nós habita. Por outro lado, possibilitou aquilo que chamamos "tomar a Cruz", isto é, a nossa cooperação na operação interior e diária da Sua morte, por meio da qual se cria em nós a possibilidade daquela nova vida se manifestar, fazendo com que o "homem na­tural" volte progressivamente ao seu devido lugar de su­jeição ao Espírito Santo. Evidentemente, estes são os aspectos positivo e negativo da mesma coisa.
De modo igualmente claro, estamos tocando no âma­go do assunto de se progredir na vida vivida para Deus. Nas nossas considerações feitas até aqui, no tocante à vi­da cristã, ressaltamos principalmente a crise de acesso a ela. Agora a nossa atenção se dedica mais definitivamente ao andar do discípulo, tendo especialmente em vista a sua preparação como servo de Deus. Foi a respeito dele que o Senhor Jesus Cristo disse: "Qualquer que não to­mar a sua cruz e vier após mim, não pode ser meu discí­pulo" (Lc 14.27).
Assim, chegamos à altura de considerar o homem na­tural e o significado de "tomar a Cruz". Para compreen­der isto devemos voltar de novo ao Gênesis e considerar o que Deus queria originalmente que o homem tivesse, e como o Seu propósito foi frustrado. Com esta compreen­são, teremos condições de descobrir os princípios que nos levarão de volta à harmonia com este propósito ori­ginal.

A verdadeira natureza da Queda

Por mínima que seja a luz que possuímos sobre a na­tureza do plano de Deus, sempre a palavra "homem" nos virá à mente. Diremos com o salmista: "O que é o ho­mem, para que Te lembres dele? " A Bíblia mostra cla­ramente que o que Deus deseja acima de todas as coisas é um homem — um homem que seja segundo o Seu pró­prio coração.
Assim, Deus criou um homem. Em Gênesis 2.7, lemos que Adão foi criado uma alma vivente, com um espírito interior para comunicar-se com Deus, e com um corpo exterior para ter contato com o mundo material. (Passa­gens do Novo Testamento tais como I Ts 5.23 e Hb. 4.12 confirmam este caráter tríplice do ser humano). Por meio do seu espírito, Adão estava em contato com o mundo espiritual de Deus; por meio do corpo, ele estava em con­tato com o mundo físico das coisas materiais. Reunia em si mesmo estes dois aspectos do ato criador de Deus, tor­nando-se uma personalidade, uma entidade viva no mun­do, movendo-se por si mesmo e tendo poderes de livre escolha. Visto assim, como um todo, achou-se constituído um ser com consciência e expressão próprias, "uma alma vivente".
Já vimos que Adão foi criado perfeito — queremos di­zer com isto que não tinha imperfeições porque foi cria­do por Deus — mas ainda não tinha sido aperfeiçoado. Precisava de um toque final, porque Deus ainda não fizera tudo quanto tencionava fazer em Adão — pretendia fa­zer algo mais, mas agora isto estava em suspenso. Deus estava operando, ao criar o homem, para cumprir um propósito que ia além do próprio homem, porque tinha em vista usufruir de todos os Seus direitos no Universo, pela instrumentalidade do homem. Como, afinal, podia o homem ser instrumento de Deus nesta obra? Somente por meio de uma cooperação que resulta da viva comu­nhão com Deus. Deus queria ter na terra uma raça de homens que não somente participasse de um só sangue, como também da própria vida de Deus, raça essa que não somente derrotaria Satanás como também levaria a efei­to tudo quanto Deus propusera no Seu coração.
Além disso, vemos que Adão foi criado com um espí­rito que lhe permitia ter comunhão com Deus, mas, co­mo homem, ainda não estava, por assim dizer, com sua orientação final; tinha poderes de escolha e, se o desejas­se, podia tomar o caminho oposto. O alvo de Deus para o homem era a "filiação", ou, em outras palavras, a expressão da Sua vida nos seres humanos. A Vida Divina estava representada no jardim pela árvore da vida, que produzia fruto passível de ser recebido e ingerido. Se Adão voluntariamente seguisse aquele caminho, esco­lhendo a dependência em Deus, e comesse da árvore da vida (representando a própria vida de Deus), receberia então aquela vida em união com Deus, que é a referida "filiação". Mas, ao invés disso, Adão se voltasse para a árvore do conhecimento do bem e do mal, ficaria, em resultado disso, "livre" para se desenvolver segundo os seus próprios recursos e desejos, separadamente de Deus. E, porque esta última escolha envolvia cumplicidade com Satanás, Adão perderia desta forma a possibilidade de atingir o alvo que Deus lhe designara.

A questão básica: a alma humana

Ora, sabemos a direção que Adão escolheu. Situado entre as duas árvores, submeteu-se a Satanás e tomou do fruto da árvore do conhecimento. Isto determinou o sentido do seu desenvolvimento. Desde então, podia co­mandar o conhecimento; ele "conhecia". Mas — e é esta a lição da questão — o fruto da árvore do conhecimento tornou o homem super-desenvolvido quanto à sua alma. A emoção foi tocada, porque o fruto era agradável aos olhos, fazendo-o "desejar"; a mente, com o seu poder de raciocinar foi desenvolvida, porque ele foi "feito sábio", e a vontade foi fortalecida, de modo que, no futuro, ele poderia sempre decidir o caminho que quisesse seguir. To­do o fruto serviu à expansão e ao pleno desenvolvimento da alma, de modo que o homem era não somente uma alma vivente, mas também, doravante, o homem viveria pela alma. Não se trata meramente de o homem ter alma, senão que a alma, daquele dia em diante, com os seus poderes independentes de livre escolha, toma o lugar do espírito como o poder animador do homem.
Temos que distinguir entre duas coisas, quanto a isso, porque a diferença é da maior importância. Deus não Se opõe a termos uma alma como a que deu a Adão, pois é esta a Sua intenção; o que Ele Se propôs a fazer foi inver­ter alguma coisa. Há algo errado hoje no homem, que não é o fato de ter uma alma, e, sim, de viver pela alma. Foi esta situação que Satanás criou pela Queda. Ardilo­samente levou o homem a seguir uma direção em que podia desenvolver a Sua alma de modo a derivar dela a sua própria vida.
Devemos, contudo, ser cuidadosos; o remédio não significa eliminar inteiramente a nossa alma. Não pode­mos fazê-lo. Quando a Cruz opera hoje realmente em nós, não nos tornamos inertes, insensatos, sem caráter. Não, ainda possuímos uma alma e, sempre que recebe­mos alguma coisa da parte de Deus, a alma será o instru­mento, a faculdade em verdadeira sujeição a Ele, através do que a recebemos. A questão, porém, é: mantemo-nos dentro dos limites indicados por Deus? — dentro dos li­mites fixados por Ele no princípio, no Jardim — no que diz respeito à alma, ou estamos saindo fora desses limi­tes?
Deus agora está realizando a obra da poda, como Viticultor. Há nas nossas almas um desenvolvimento sem domínio e sem orientação, um crescimento inoportuno, que tem que ser verificado e submetido a tratamento.
Deus tem que cortar isso. De modo que há agora perante nós duas coisas, em relação às quais os nossos olhos de­vem ser abertos. Por um lado, Deus quer nos levar à po­sição de vivermos pela vida do Seu Filho. Por outro lado, Ele opera diretamente nos nossos corações, para desfazer aquela outra fonte de recursos naturais que é o resultado do fruto do conhecimento. Aprendemos cada dia estas duas lições: uma crescente manifestação da vida dEle, e uma verificação e uma entrega à morte daquela outra vi­da, a alma. Estes dois processos sempre estão em anda­mento, porque Deus procura em nós a vida plenamente desenvolvida do Seu Filho, para que Ele seja manifesta­do em nós, e, com este fim em vista, nos faz retroceder, quanto à alma, ao ponto de partida de Adão. Pelo que Paulo diz: "Porque nós, que vivemos, estamos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal" (2 Co 4.11).
O que significa isto? Significa que não empreenderei nenhuma ação sem depender confiadamente de Deus. Não encontrei suficiência em mim mesmo. Não darei qualquer passo somente porque tenho o poder de fazê-lo. Mesmo que tenha em mim aquele poder herdado, não o usarei; não depositarei confiança em mim mesmo. Ao to­mar o fruto, Adão ficou possuído de um poder inerente de agir, foi, porém, um poder que o colocava ao alcance de Satanás. Perdemos aquele poder de agir quando che­gamos a conhecer o Senhor. O Senhor corta-o, e então percebemos que já não podemos agir segundo a nossa iniciativa própria. Temos que viver pela vida de Outro; temos que derivar tudo dEle.
Penso que todos nos conhecemos a nós mesmos, até certo ponto, mas muitas vezes não trememos verdadeira­mente com receio de nós mesmos. Podemos dizer, co­mo fórmula de cortesia para com Deus: "Se o Senhor não quiser, não posso fazê-lo", mas, na realidade, o nos­so pensamento subconsciente é que, realmente, podemos fazê-lo muito bem por nós mesmos, mesmo se Deus não nos pedir para fazê-lo nem nos der o poder necessário pa­ra realizá-lo. Muitíssimas vezes temos sido levados a agir, a pensar, a decidir, a ter poder, separadamente dEle. Muitos de nós, cristãos, hoje, somos homens de alma superdesenvolvida. Ficamos demasiadamente grandes em nós mesmos. Adquirimos "grandes almas". Quando esta­mos nesta condição, a vida do Filho de Deus em nós fica restrita e quase posta fora de ação.

A energia natural na obra de Deus

A energia da alma está presente em todos nós. Todos os que têm sido ensinados pelo Senhor repudiam aquele princípio como princípio de vida. Recusam viver orienta­dos por ele; não o deixarão reinar nem lhe permitirão tornar-se o poder impulsionador da obra de Deus. Aque­les, porém, que não têm sido ensinados por Deus, depen­dem dele; utilizam-no, consideram isto o poder.
Muitos de nós temos pensado da seguinte maneira: eis um homem dotado de uma natureza verdadeiramente en­cantadora, possuidor de um bom cérebro, esplêndidos poderes orientadores e um julgamento sábio. Dizemos, nos nossos corações: "Se este homem fosse cristão, de que valor seria para a Igreja! Se ele pertencesse ao Se­nhor, quanto representaria para a Sua causa!"
Mas, pensemos por um momento. De onde vem a boa natureza daquele homem? De onde provêm aqueles esplêndidos poderes orientadores e aquele bom juízo? Não vêm de novo nascimento, porque ele ainda não nas­ceu de novo. Sabemos que todos já nascemos na carne, e que necessitamos de um novo nascimento. O Senhor Je­sus disse algo a este respeito em João 3.6: "O que é nas­cido da carne, é carne". Tudo o que não vem do novo nascimento, mas do meu nascimento natural, é carne, e apenas trará glória para o homem e não para Deus. Esta declaração não é muito agradável, mas é a verdade.
Mencionamos o poder da alma, a energia natural. O que é esta energia natural? É simplesmente o que eu posso fazer, o que eu sou em mim mesmo, o que eu te­nho herdado em matéria de dons e recursos naturais. Nenhum de nós está isento do poder da alma e a nossa primeira necessidade é reconhecê-lo por aquilo que é.
Tomemos a mente humana como exemplo. Posso ter, por natureza, uma mente viva. Já a tinha antes do meu novo nascimento, como algo derivado do meu nascimen­to natural. Mas é aqui que reside o problema. Converto-me, nasço de novo, uma obra profunda é realizada no meu espírito, uma união essencial foi operada com o Pai dos espíritos. Daí em diante, há em mim duas coisas: te­nho agora união com Deus, que foi estabelecida no meu espírito, mas, ao mesmo tempo, continuo a levar comigo alguma coisa que derivei do meu nascimento natural. Ora, o que vou fazer a respeito disso?
A tendência natural é esta: inicialmente, eu costuma­va usar a minha mente para esquadrinhar a história, os negócios, a química, as questões do mundo, a literatura, ou a poesia. Usava a minha mente viva para tirar o me­lhor proveito destes estudos. Mas agora, os meus desejos mudaram de maneira que, daqui em diante, emprego a mesma mente nas coisas de Deus. Portanto, mudei o assunto que ocupa o meu interesse, mas não mudei o meu método de agir. Aí está o problema total. Os meus interesses foram mudados de uma forma absoluta (e gra­ças a Deus por isso!) mas agora eu emprego o mesmo poder para estudar Coríntios e Efésios que usava antes para me dedicar à história e à geografia. Mas esse poder não é de Deus, e Deus não permitirá isso. O problema, para muitos de nós, é que mudamos o canal para o qual as nossas energias se dirigem, mas não mudamos a fonte dessas energias.
Verificaremos que há muitas dessas coisas que trans­ferimos para o serviço de Deus. Consideremos a questão da eloqüência. Há alguns homens que nascem oradores; podem apresentar um caso de forma realmente convin­cente. Depois, convertem-se e, sem inquirirmos qual a posição em que de fato se acham em relação às coisas espirituais, colocamo-los no púlpito, constituindo-os pregadores. Encorajamo-los a usar os seus poderes natu­rais na pregação e, de novo, o que se verifica? Urna mu­dança de assunto, o poder, porém, é o mesmo. Esquece­mo-nos de que, na questão dos recursos que possuímos para tratar das coisas de Deus, a questão não é de valor comparativo mas de origem — de onde dimanam os recursos que usamos. O problema não está tanto no que faze­mos, mas nos poderes que empregamos para fazê-lo. Pen­samos muito pouco a respeito da fonte da nossa energia, e pensamos demais no fim para que ela se dirige, esque­cendo-nos de que, com Deus, os fins nunca justificam os meios.
O seguinte caso hipotético nos ajudará a demonstrar a verdade do nosso argumento. O Sr. A é um orador muito bom: pode falar fluentemente e com a maior con­vicção sobre qualquer assunto, mas, em questões práti­cas, é um homem de desempenho fraco. O Sr. B., pelo contrário, é um orador pobre ;não consegue se expressar com clareza; por outro lado, é um esplêndido homem de ação, muito competente em todas as questões de ne­gócios. Ambos estes homens se convertem e ambos se tornam cristãos fervorosos. Suponhamos agora que cha­mo os dois e lhes peço que falem numa convenção, e que ambos aceitam.
O que acontecerá agora? Pedi a mesma coisa a ambos, mas, quem pensa você que vai orar mais intensamente? O Sr. B., certamente. Por quê? Porque ele não é bom orador. No que se refere à eloqüência, ele não tem recur­sos próprios de que dependa. Oraiá: "Senhor, se não me deres poder para fazer isto, não poderei fazê-lo". Eviden­temente, o Sr. A. também orará, mas talvez não o faça da mesma forma que o Sr. B., porque ele tem alguns re­cursos naturais em que pode confiar.
Agora, suponhamos que, em vez de lhes pedir para fa­lar, peço aos dois que tomem conta das questões de ordem prática e material da convenção. O que acontece­rá? A posição será exatamente o reverso. Será agora o Sr. A, que se dedicará mais intensamente à oração, por­que ele sabe perfeitamente bem que não tem capacidade organizadora. O Sr. B., evidentemente, também orará, mas talvez sem a mesma qualidade de urgência porque, embora reconheça a sua necessidade do Senhor, ele não se acha tão consciente da sua necessidade em questões materiais como o Sr. A.
Você percebe a diferença entre os dons naturais e espirituais? Qualquer coisa que possamos fazer sem oração e sem uma dependência extrema de Deus, deverá certamente ser suspeitada como provindo daquela fonte de vida natural. Devemos compreender isto claramente. Evidentemente, isto não quer dizer que somente se deve indicar para um trabalho especial aqueles a quem falta o dom natural para fazê-lo. A questão é que, quer dotados ou não de dons naturais, devem conhecer o toque da Cruz, numa experiência de morte, sobre tudo o que é natural, e devem experimentar completa dependência do Deus da ressurreição. Às vezes estamos prontos a sentir inveja do dom muito notável do nosso próximo, sem re­conhecer que se nós possuíssemos este dom, independen­temente da operação da Cruz já descrita, o próprio dom poderia ser um empecilho àquilo que Deus quer mani­festar em nós.
Pouco depois da minha conversão, saí pregando nas aldeias. Recebera uma boa instrução e estava bem versa­do nas Escrituras, de modo que me considerava absolu­tamente capaz de instruir o povo nas aldeias, entre o qual havia um bom número de mulheres analfabetas. Mas, depois de algumas visitas, descobri que, apesar da sua ignorância, aquelas mulheres tinham um conhecimento íntimo do Senhor. Eu conhecia o Livro que elas liam com muita dificuldade; elas conheciam Aquele de Quem o livro fala. Eu tinha muito da carne; elas tinham muito do Espírito. Há tantos educadores cristãos hoje que ensi­nam outras pessoas como eu então o fazia: dependendo, em grande parte, do poder do seu equipamento carnal.
Não quero dizer que não podemos fazer uma série de coisas, porque na verdade podemos. Podemos fazer reu­niões e construir casas de oração, podemos ir aos confins da Terra e fundar missões, e pode parecer que damos fruto; mas lembremo-nos, a Palavra do Senhor diz: "To­da planta que o meu Pai celestial não plantou, será arran­cada" (Mt 15.13). Deus é o único originador legítimo do Universo (Gn 1.1). Qualquer coisa elaborada por nós tem a sua origem na carne e nunca alcançará a esfera do Espírito, por mais fervorosamente que busquemos a bên­ção de Deus sobre ela. Pode durar anos e então podemos pensar que, fazendo ajustamentos aqui e ali, talvez possamos colocar essa iniciativa num plano melhor, mas não se pode fazer tal coisa.
A origem determina o destino, e o que originalmente foi "da carne", nunca se tornará espiritual, por mais que se procure aperfeiçoá-lo. Aquilo que é nascido da carne, é carne, e nunca será doutra forma. Qualquer coisa que contribui para a nossa "auto-suficiência" é "nada" na estimativa de Deus, e temos que aceitar essa estimativa e registrar que o seu valor é, realmente, nada. "A carne para nada aproveita". É apenas o que vem de cima que permanecerá.
Este não é um assunto que se aprende através da sua simples apresentação: só Deus pode nos fazer entender do que se trata, quando indica algo em nossas vidas, di­zendo: "Isto é meramente natural, e sua origem é a ve­lha criação, e não pode permanecer". Antes de Ele assim fazer, talvez concordemos com tal doutrina, sem, porém, a sentir em nossa vida. Podemos aprovar o ensino, e até mesmo ter prazer nele, sem, porém, chegar a realmente sentir repugnância por aquilo que somos em nós mesmos.
Chegará, porém, o dia em que Deus abrirá os nossos olhos. Encarando determinada circunstância, teremos que dizer, como resultado da revelação: "Isto é impuro, impuro mesmo; Senhor, agora é que percebo isto". A pa­lavra "pureza" é uma palavra abençoada. Associo-a sem­pre com o Espírito. Pureza significa alguma coisa inteira­mente do Espírito. A impureza significa mistura. Quan­do Deus abre os nossos olhos e nos capacita a perceber que a vida natural é algo que Ele nunca pode usar na Sua obra, então verificamos que já não consideramos com prazer esta doutrina. Antes, nos aborrecemos a nós mesmos, pela impureza que há em nós; mas, quando se atinge esta posição, Deus começa o Seu trabalho de liber­tação."

A luz de Deus e o conhecimento

Evidentemente, se alguém não se propõe a servir ao Senhor de todo o coração, não sente necessidade de luz. É só quando alguém foi chamado por Deus e procura avançar com Ele que sente grande necessidade da luz.
Precisamos urgentemente de Luz, a fim de conhecermos a mente do Senhor, para distinguirmos entre as coisas do Espírito e as da alma; para saber o que é divino e o que é meramente do homem; para discernir o que é verdadeira­mente celestial e o que é apenas terreno; para compreen­der a diferença entre o que é espiritual e o que é carnal; para saber se realmente estamos sendo guiados por Deus, ou se andamos pelos nossos próprios sentimentos, senti­dos ou imaginações. Achamos que a luz é a coisa mais necessária na vida cristã, quando atingimos a posição em que desejamos seguir plenamente a Deus.
Nas minhas conversas com jovens irmãos e irmãs, há uma pergunta que surge repetidamente: "Como posso sa­ber que estou andando no Espírito? "Como vou distin­guir quais os impulsos, dentro de mim, que são do Espí­rito Santo e quais os que provêm de mim mesmo? " Pa­rece que todos são unânimes nisso, embora alguns vão mais longe. Procuram olhar para dentro de si, a fim de diferenciar, discriminar, analisar e, ao fazê-lo, colocam-se a si mesmos numa escravidão mais profunda. Ora, esta é uma situação que realmente é perigosa na vida cristã, porque o conhecimento interior nunca se alcança­rá por meio dessa vereda árida do exame próprio.
A Palavra de Deus não nos manda examinar a nossa condição interior; esse caminho conduz apenas à incerte­za, à vacilação e ao desespero. É certo que devemos ter o conhecimento de nós mesmos. Temos que conhecer o que se passa em nosso íntimo. Não queremos ter a ale­gria dos que não sabem a verdadeira situação perigosa, errando sem reconhecer o erro, exercendo a nossa von­tade própria e ainda pensando ser esta a vontade de Deus. Este conhecimento de nós mesmos, no entanto, não resulta de olharmos o nosso próprio íntimo; não vem como resultado da nossa análise dos nossos sentimentos e motivos e de tudo quanto se processa no nosso íntimo; não é assim que se descobre se estamos andando na car­ne ou no Espírito.
Há várias passagens nos Salmos que iluminam este assunto. A primeira é o Salmo 36.9: "Na tua luz, vere­mos a luz". Há duas luzes aqui. Ha a "Tua luz", e, depois, quando entramos nesta luz, "veremos a luz".
Ora, estas duas luzes são diferentes. Podíamos dizer que a primeira é objetiva e a segunda subjetiva. A primei­ra luz é a luz que pertence a Deus, e que Ele derrama so­bre nós; a segunda é o conhecimento comunicado por essa luz. "Na tua luz veremos a luz": conheceremos algu­ma coisa, seremos esclarecidos a respeito de algo, perce­beremos. Nunca chegaremos à posição de vermos clara­mente, por meio do exame auto-introspectivo ; só veremos quando há luz proveniente de Deus.
Penso que isto é muito simples. Se quisermos verificar se o nosso rosto está limpo, o que devemos fazer? Pro­curamos apalpá-lo, cuidadosamente, com as mãos? Evi­dentemente que não. Procuramos um espelho e trazemo-lo para a luz. À luz, tudo se torna claro. Nada vemos por meio das sensações ou da análise. Somente é possível nos ver mediante a manifestação da luz de Deus; uma vez que brilha a luz de Deus, já não é mais necessário perguntar se determinada coisa está certa ou errada, por­que já o sabemos.
Relembremo-nos do que diz o escritor de Salmo 139. 23: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração". Cer­tamente não sou eu que me sondo a mim mesmo — Quem me sonda é Deus; é este o meio de iluminação. É Deus que Se manifesta e me sonda; não me cabe a mim sondar-me. Evidentemente, isso nunca significará que vou pros­seguir cega e descuidadamente a respeito da minha verda­deira condição. Não é essa a idéia. A questão é que, por muito que o meu auto-exame possa revelar, a meu respei­to, que eu necessito de correção, ele nunca poderá ir muito além da superfície. O verdadeiro conhecimento de mim mesmo não resulta de um auto-exame, mas do exame que Deus faz de mim.
Perguntar-se-á o que significa, na prática, entrar na luz? Como é que isto opera? Como é que vemos luz na Sua luz? Uma vez mais o salmista vem ajudar-nos; "A revelação das tuas palavras esclarece (dá luz); dá entendi­mento aos simples" (Salmo 119.30). Nas coisas espiri­tuais, todos somos "simples". Dependemos de Deus pa­ra recebermos dEle, de forma muito especial, entendimento a respeito da nossa verdadeira natureza. É neste sentido que opera a Palavra de Deus. No Novo Testamen­to, a passagem que o declara, de forma mais acessível, se encontra na Epístola aos Hebreus: "Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração. E não há cria­tura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrá­rio, todas as cousas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos que prestar contas" (Hb 4. 12,13). Sim, é a Palavra de Deus, a penetrante Escritura da Verdade, que resolve as nossas perguntas. É ela que discerne os nossos motivos e revela se a sua verdadeira origem é alma ou o espírito.
Com isto, podemos partir para o aspecto prático das coisas. Muitos de nós, estou certo, vivemos honesta­mente diante de Deus. Temos feito progresso e não co­nhecemos qualquer coisa, em nós, que possa ser conside­rada muito errada. Então, um dia, à medida que prosse­guimos, deparamos com o cumprimento daquela palavra: "A revelação das tuas palavras esclarece". Deus usou algum dos Seus servos para nos confrontar com a Sua Palavra viva, e essa Palavra entrou em nós. Ou, talvez, nós mesmos temos esperado em Deus e, quer por meio das Escrituras memorizadas, quer pela leitura da Bíblia, a Sua Palavra vem a nós em poder. É então que vemos algo que nunca viramos antes. Ficamos convictos. Sabe­mos onde estamos errados e olhamos para cima e confes­samos: "Senhor, agora entendo. Há impurezas neste assunto. Há uma mistura. Como eu estava cego! E pensar que durante tantos anos estive errado, sem disso ter cons­ciência!" A luz se manifesta, e nós vemos a luz. A luz de Deus nos leva a ver a luz a respeito de nós mesmos e, é princípio permanente que todo o conhecimento de nós mesmos nos sobrevém desta forma.
Talvez nem sempre sejam as Escrituras que operam isto. Alguns de nós temos conhecido santos que conhe­ciam de perto o Senhor por termos orado ou conversado com eles, e, nesta intimidade, no meio da luz de Deus que deles se irradiava, chegamos a perceber algo que nun­ca tínhamos visto antes. Encontrei-me com uma destas pessoas, que agora está com o Senhor, e sempre penso nela como sendo uma cristã fervorosa. Mal entrava no quarto dela, ficava imediatamente cônscio da presença de Deus. Naqueles dias, era eu muito jovem, convertera-me havia dois anos, e tinha uma série de planos, de belos pensamentos, de esquemas, de projetos para o Senhor sancionar, inúmeras coisas que pensava que seria maravi­lhoso se chegassem a frutificar, e dirigi-me a ela para procurar persuadi-la de que deveria fazer isto ou aquilo.
Antes que pudesse abrir a boca, ela dizia apenas algu­mas palavras de modo absolutamente normal. A luz raia­va! Sentia-me simplesmente envergonhado. O meu "fa­zer" era tão natural, tão cheio do homem! Alguma coisa acontecia. Era levado a uma posição em que podia dizer: "Senhor, a minha mente apenas se prende a atividades humanas. Mas eis aqui alguém que não está, de forma alguma, envolvida nelas". Ela apenas tinha um motivo, um desejo, e esse era Deus. Escrita na capa da sua Bíblia estavam estas palavras: "Senhor, não quero nada para mim". Sim, ela vivia apenas para Deus, e onde quer que encontremos um caso semelhante, verificaremos que essa pessoa está banhada em luz, e que essa luz ilumina os outros. Isto, realmente, é testemunhar.
A luz tem uma lei: brilha onde quer que seja admitida. Esta é a única condição. Nós temos a possibilidade de excluí-la de nós mesmos; ela nada mais teme senão a exclusão da nossa parte. Se nos mantivermos abertos pa­ra Deus, Ele nos revelará o nosso íntimo. O problema surge quando mantemos áreas fechadas e lugares cerrados e trancados em nossos corações, quando orgulhosamente pensamos que temos toda a razão. A nossa derrota não consiste em estarmos errados, mas em não sabermos que estamos errados. Estar errado pode ser questão de força natural; a ignorância de que se está errado é questão de luz. Podemos ver a força natural em outras pessoas, mas elas não podem vê-la em si mesmas. Como necessitamos de sermos sinceros e humildes, e de nos abrirmos diante de Deus! Só aqueles que se abrem poderão ver. Deus é luz, e não podemos viver na Sua luz e ainda ficar sem en­tendimento. Digamos, outra vez, com o Salmista: "Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem" (Salmo 43.3).
Damos graças a Deus porque hoje a atenção dos cren­tes é chamada para a realidade do pecado mais do que antes. Em muitos lugares, os seus olhos tem-se aberto para ver a vitória sobre os pecados, como experiência separada de grande importância na vida cristã, e, em con­seqüência disso, muitos estão andando mais perto do Se­nhor, procurando libertação e vitória sobre os mesmos. Graças a Deus por qualquer movimento para Ele, qual­quer movimento de regresso a uma verdadeira santidade perante Deus! Isto, porém, não é suficiente. Há ainda uma coisa em que se deve tocar: a própria vida do homem, e não meramente os seus pecados. A questão da persona­lidade do homem, do poder da sua alma, é o coração do problema. Considerar que os pecados constituam a tota­lidade do problema, equivale a ficar ainda à superfície. A santidade, se apenas levarmos em conta os pecados, é, ainda, uma experiência exterior e superficial. Nesse caso, ainda não atingimos a raiz do problema.
Adão deixou o pecado entrar no mundo ao escolher o desenvolvimento do seu próprio-eu, da sua alma, sepa­radamente de Deus. Quando, pois, Deus alcançar uma raça de homens que será para a Sua própria glória, e que será Seu instrumento para realizar os Seus propósitos no Universo, será uma raça cuja vida - sim, até a própria respiração — estará na total dependência dEle. Ele será, para esta raça, "a árvore da vida".
A necessidade que sinto sempre mais, em mim mesmo e entre todos os filhos de Deus, é a revelação real de nós mesmos, que devemos pedir da parte de Deus. Já disse que não se trata de sempre esquadrinharmos o nosso próprio íntimo, perguntando se isto ou aquilo vem da alma ou do Espírito. Esta atitude não terá qualquer re­sultado prático, pois é escuridão. Não, a Escritura nos mostra como os santos chegaram ao conhecimento de si mesmos. Foi sempre pela luz de Deus, luz que é o próprio Deus. Isaías, Ezequiel, Daniel, Pedro, Paulo, João: todos chegaram a possuir verdadeiro conhecimen­to de si mesmos porque a luz do Senhor brilhou sobre eles, trazendo-lhes revelação e convicção (Is 6.5; Ez 1. 28; Dn 10.8; Lc 22.61,62; At 9.3-5; Ap 1.17).
Nunca conheceremos a hediondez do pecado e as nos­sa própria hediondez sem que haja uma manifestação da luz de Deus sobre nós. Não falo de uma sensação e, sim, de uma revelação que o Senhor faz ao nosso íntimo, através da Sua Palavra. Isto fará por nós o que a doutri­na, por si só, nunca poderia fazer.
Cristo é a nossa luz, a Palavra viva que nos traz revela­ção enquanto lemos as Escrituras: "A vida era a luz dos homens" (João 1.4). Tal iluminação talvez nos sobrevenha apenas gradualmente, mas será cada vez mais clara e nos sondará mais e mais perfeitamente até que nos veja­mos na luz de Deus que dissipará toda a nossa confiança própria. A luz é a coisa mais pura do mundo. Purifica. Esteriliza. Matará tudo o que não deve estar presente, transformando em realidade a doutrina da "divisão de juntas e medulas". Conheceremos o temor e tremor na medida em que reconhecermos a corrupção da natureza humana, a hediondez da nossa própria personalidade, e a ameaça real que representa para a obra de Deus a energia e vida insubordinada da alma. Como nunca antes, vemos agora quão necessária nos é aquela ação drástica de Deus, se realmente quisermos ser usados, e sabemos que, sem Ele, somos inúteis como servos de Deus.
Aqui também, a Cruz, no seu sentido mais amplo, nos auxiliará, e passaremos agora a examinar o aspecto da sua obra que diz respeito ao problema da alma humana. Somente a compreensão completa da Cruz pode nos le­var àquela posição de dependência que o próprio Senhor Jesus voluntariamente assumiu, quando disse: "Eu nada posso fazer por mim mesmo; na forma por que ouço, julgo. O meu juízo é justo porque não procuro a minha própria vontade, e, sim, a daquele que me enviou" (João 5.30).


13

A vereda do progresso:

levando a Cruz

Tendo mencionado a questão do nosso serviço presta­do ao Senhor, consideraremos agora a provisão feita por Deus quanto ao problema criado pela vida da alma do homem, examinando primeiramente o problema como tal. Deus estabeleceu princípios específicos que gover­nam o serviço que fazemos para Ele, dos quais não po­dem se desviar os que quiserem servi-Lo. A base da nos­sa salvação, como bem o sabemos, é o fato da morte e da ressurreição do Senhor, e a base do nosso serviço cristão não é menos definida: é o princípio da morte e da ressurreição.

A base de todo o ministério verdadeiro

Ninguém pode ser um verdadeiro servo de Deus sem conhecer o princípio da morte e o princípio de ressurrei­ção. O próprio Jesus serviu nessa base. Verificaremos em Mateus 3 que, antes de o Seu ministério começar, o nos­so Senhor foi batizado, e isto não porque tivesse qual­quer pecado ou qualquer coisa que precisasse de purifi­cação. Não; o batismo é uma figura de morte e de ressur­reição. O ministério do Senhor não começou até que Ele Se encontrasse neste plano. Depois de Ele ter sido bati­zado, voluntariamente assumindo a posição de morte e ressurreição, é que o Espírito Santo veio sobre Ele, e, após essa experiência, Ele entrou no ministério.
O que nos ensina isto? Nosso Senhor foi um Homem sem pecado. Nenhum outro homem pisou a terra sem conhecer o pecado. Todavia, como Homem, Ele tinha uma personalidade separada do Pai. Quando Jesus disse: "Não busco a minha própria vontade, mas a vontade da­quele que me enviou", não queria negar que possuísse vontade própria; como filho do homem, tinha-a, mas não a exerceu, porque veio fazer a vontade do Pai. Aqui­lo que nEle é distinto do Pai é a alma humana, que rece­beu quando "foi reconhecido em figura humana". Sendo homem perfeito, nosso Senhor tinha uma alma e um corpo como você e eu os temos, e era-Lhe possível agir mediante os recursos da alma — isto é, agir de Si e por Si mesmo.
Recordamos que, imediatamente após o batismo do Senhor, e antes do começo do Seu ministério público, Satanás veio tentá-Lo. Tentou-O a satisfazer as Suas ne­cessidades essenciais, convertendo as pedras em pão; a alcançar o respeito pelo Seu ministério, aparecendo miraculosamente no pátio do Templo; a assumir, sem de­mora, o domínio mundial que Lhe estava destinado; e sentimo-nos inclinados a inquirir das razões que o leva­ram a tentar o Senhor a fazer coisas tão estranhas. Podia, pensamos, tentá-Lo antes a pecar de forma mais eficaz. No entanto não o fez. Satanás apenas disse ao Senhor: "Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tor­nem em pão". O que significava isto? A implicação era esta: "Se Tu és o Filho de Deus, deves fazer alguma coi­sa para prová-lo. Eis um desafio. Alguns certamente obje­tarão que a Tua reivindicação pode não ser real. Por que não esclareces o assunto agora, de forma conclusiva, manifestando-Te e provando-o?"
A intenção subtil de Satanás era levar o Senhor a agir por Si mesmo — isto é, com base na alma — e, pela atitu­de que assumiu, o Senhor Jesus repudiou totalmente tal ação. Em Adão, o homem agira por si mesmo, separada­mente de Deus; daí resultou toda a tragédia do Jardim. Agora, numa situação semelhante, o Filho do Homem toma uma atitude bem diferente. Mais tarde, Ele a defi­ne como princípio fundamental de vida para Ele — e gosto da palavra no Grego: "O Filho nada pode fazer para fora de si mesmo" (João 5.19). Esta total negação da vida da alma governou todo o Seu ministério.
Podemos, portanto, dizer com toda a segurança que toda a obra que o Senhor Jesus fez na Terra, antes da Sua morte na Cruz, foi feita tendo por base o princípio de morte e ressurreição, embora, como acontecimento real, o Calvário ainda se situasse no futuro. Tudo o que Ele fez foi neste plano. Mas, se o Filho do homem tem que passar pela morte e ressurreição (em figura e em princípio) a fim de realizar a Sua obra, pode acontecer conosco de forma diferente? Nenhum servo do Senhor pode servi-Lo sem conhecer, na sua própria vida, a ope­ração daquele princípio.
O Senhor esclareceu isto muito bem aos Seus discípu­los quando os deixou. Ele morrera e ressuscitara e disse-lhes que esperassem em Jerusalém a vinda do Espírito so­bre eles. O que é este poder do Espírito Santo, este "po­der do alto" de que Ele falou? É nada menos do que a virtude da Sua morte, ressurreição e ascensão. O Espírito Santo é, figuradamente falando, o Vaso em que todos os valores da morte, ressurreição e exaltação do Senhor estão depositados, para que possam ser ministrados a nós. É o único que "contém" aqueles valores, e que os administra aos homens. Esta é a razão por que o Espíri­to não podia ser dado antes de o Senhor ser glorificado. Somente então poderia Ele repousar sobre homens e mulheres, para que estes pudessem testemunhar: e, sem os valores da morte e da ressurreição de Cristo, não é possível tal testemunho.
Se voltarmos ao Antigo Testamento, acharemos ali a mesma verdade. Refiro-me a uma passagem familiar no capítulo 17 de Números. Contestou-se o ministério de Arão, perguntando-se entre o povo se era ele verdadeira­mente o escolhido de Deus, e assim, Deus vai provar quem é Seu servo e quem não é. Como o faz? Doze va­ras mortas são colocadas perante o Senhor no santuário, diante do testemunho, e ficam ali durante uma noite. Na manhã seguinte, o Senhor indica o Seu servo escolhido por meio da vara que se cobre de renovos, que floresce e frutifica.
Todos conhecemos o significado disto. A vara que floresceu fala da ressurreição. É a morte e a ressurreição que marcam o ministério reconhecido por Deus. Sem isso, nada temos. O florescimento da vara de Arão pro­vou que ele baseava seu serviço no princípio certo, pois Deus somente reconhece como ministros Seus os que passaram pela morte para o alicerce da ressurreição.
Já vimos que a morte do Senhor opera de várias, ma­neiras diferentes, e tem aspectos diferentes. Sabemos co­mo a Sua morte operou no que diz respeito ao perdão dos nossos pecados. Todos sabemos que o nosso perdão se baseia no Sangue derramado e que, sem o derrama­mento de Sangue, não há remissão. Depois, fomos mais longe e, em Romanos 6, vimos como a morte opera pa­ra vencer o poder do pecado. Aprendemos que o nosso homem velho foi crucificado a fim de que, daqui em diante, não sirvamos mais ao pecado, e rendamos louvo­res ao Senhor pela nossa libertação, conseguida através da Sua morte. Mais tarde ainda, surge a questão da von­tade própria do homem, e torna-se evidente a necessida­de da consagração, e percebemos que neste assunto também, a morte opera, levando-nos a abdicar das nos­sas vontades próprias e a obedecer ao Senhor. É justa­mente semelhante morte que constitui o ponto de parti­da para o nosso ministério, mas ainda não toca o âmago da questão, porque ainda pode haver ignorância quanto ao significado da alma.
Em seguida, em Romanos 7, focalizando a questão da santidade da vida, uma nova fase se nos apresenta de santidade pessoal e viva sendo procurada por um verda­deiro homem de Deus que procura agradar a Deus em justiça; acha-se sob a Lei, e a Lei o confunde. Quando quer agradar a Deus mediante o seu próprio poder carnal, a Cruz tem que levá-lo à atitude de dizer: "Não posso satisfazer a Deus mediante o emprego dos meus próprios poderes; apenas posso confiar no Espírito Santo para fazê-lo em mim". Creio que alguns de nós temos passado por águas profundas para aprender isto, para descobrir o valor da morte do Senhor operando desta maneira.
Note-se que há ainda uma grande diferença entre "a carne", como é referida em Romanos 7, em relação à santidade de vida, e a operação das energias naturais da vida da alma no serviço do Senhor. Conhecendo-se tudo o que precede — e conhecendo-se em experiência — ain­da resta mais esta esfera, em que a morte do Senhor tem que entrar, antes que sejamos realmente úteis no Seu ser­viço. Mesmo com todas as experiências anteriores, ainda não estamos em condições de sermos usados por Ele, até que tenhamos esta nova experiência. Quantos dos servos de Deus são usados por Ele, como dizemos na China, pa­ra edificar quatro metros de parede, para, após o terem feito, derrubarem por si mesmos cinco metros! Somos usados de certa maneira, mas, ao mesmo tempo, destruí­mos a nossa própria obra e, às vezes, também a dos outros, por existir ainda em nós alguma coisa que não foi transformada pela Cruz.
Temos que ver agora como o Senhor Se propõe a tra­tar da alma e, em seguida, como isto afeta a questão do nosso serviço prestado a Ele.

A operação subjetiva da Cruz

Devemos conservar agora diante de nós quatro passa­gens dos Evangelhos: Mt 10.34-39; Mc 8.32-35; Lc 17. 32-35 e João 12.24-26. Estas quatro passagens têm algo em comum. Em cada uma delas, o Senhor nos fala acer­ca da atividade da alma do homem, e algo se diz quanto a algum aspecto ou manifestação da vida da alma. Nestes versículos Ele mostra claramente que há uma só maneira de encarar a alma e tratar do problema, e esta consiste em levarmos a Cruz cada dia e em O seguirmos.
A vida da alma, ou seja, a vida natural, que aqui esta­mos considerando, é algo mais do que aquilo que diz res­peito ao velho homem ou à carne, nas passagens que já estudamos. Quanto ao homem velho. Deus salienta aqui­lo que Ele fez, de uma vez para sempre, ao crucificar-nos com Cristo na Cruz. Vimos que três vezes, na Epístola aos Gálatas, se faz referência ao aspecto "crucificante" da Cruz, como algo realizado e cumprido; e, em Rm 6.6, declara-se patentemente que "foi crucificado com ele o nosso velho homem", e, parafraseando da seguinte maneira que leva em conta o significado do tempo do verbo, podemos dizer: "O nosso homem velho foi crucificado, finalmente e para sempre". É algo que está feito, que deve apreender-se por revelação divina e de que devemos nos apropriar pela fé.
Há, porém, um novo aspecto da Cruz, o que está implícito nessa expressão "tomar a sua cruz cada dia". A Cruz levou-me sobre ela; agora eu devo levá-la; esta ação de levar a cruz é algo que faço no meu íntimo. É isto que queremos dizer quando falamos da "operação subjetiva da Cruz". Além disso, é um processo diário; é a atitude de segui-Lo, passo a passo. Não se trata aqui da "crucificação" da própria alma, no sentido de que os nossos dons e faculdades naturais, a nossa perso­nalidade e a nossa individualidade, têm que ser inteira­mente deixados de lado. Se assim fosse, dificilmente po­deria dizer-se a nosso respeito, como em Hb 10.39, que devemos ter fé "para a conservação da alma" (comparar I Pe 1.9; Lc 21.19). Não, não perdemos as nossas almas, neste sentido, porque, se assim fosse, isso significaria per­der completamente a nossa existência individual. A alma ainda está presente com os seus talentos naturais, mas a Cruz é chamada a exercer a sua ação sobre ela, com o fim de levar à morte aqueles talentos naturais - e pôr a marca da Sua morte sobre eles — e depois, como agra­dar a Deus, restituir-nos os mesmos talentos pela ressur­reição.
É neste sentido que Paulo, escrevendo aos Filipenses, expressa o desejo: "Para o conhecer e o poder da sua res­surreição e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte" (Fp 3.10). A marca da morte está continuamente sobre a alma, para trazê-la à atitude de subordinação ao Espírito e de nunca se afir­mar independentemente dEle. Somente a Cruz, operan­do desta maneira, podia fazer um homem do calibre de Paulo e com os recursos naturais referidos em Filipenses 3, perder de tal maneira a sua força própria e natural que chegasse a escrever aos Coríntios: "Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós. A minha palavra e a minha pregação não con­sistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder." (I Co 2.24).
A alma é o centro das afeições e a grande parte das nossas decisões e ações é por ela influenciada. Note-se que nada há de deliberadamente pecaminoso nelas; tra­ta-se, porém, de haver em nós algo que se pode prender em afeição natural a outra pessoa e que, como resultado pode influenciar erradamente todo o curso da nossa ação. Assim sendo, o Senhor nos diz: "Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim, não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz, e vem após mim, não é digno de mim" (Mt 10.37,38). Notemos que aqui se demonstra que seguir o Senhor, no caminho da Cruz, é o Seu plano normal para nós, o único caminho que Ele nos aponta. Qual é o resultado imediato? "Quem acha a sua vida, perdê-la-á; quem, todavia, perde a vida por minha causa, achá-la-á" (Mt 10.39).
O perigo oculto está naquela obra subtil das afeições que nos desvia do caminho de Deus; e a chave da ques­tão está na alma. A Cruz tem que tratar disso. Eu tenho que "perder" a minha alma, no sentido em que o Se­nhor empregou aquelas palavras e que procuraremos explicar aqui.
Alguns de nós conhecemos bem o que significa per­der a alma. Já não podemos satisfazer os seus desejos; não podemos ceder às suas instâncias; não podemos gratificá-la: é isto a "perda" da alma. Passamos por um processo doloroso para desencorajar aquilo que a alma pede. E muitas vezes temos que confessar que não é um pecado específico que nos impede de seguir o Senhor até o fim. Somos detidos por causa de algum amor se­creto, e alguma afeição perfeitamente natural nos desvia da nossa carreira. Sim, a afeição desempenha um papel muito grande em nossas vidas, e a Cruz tem que intervir nisto e fazer a sua obra.
Passamos agora à referência em Mc 8.31. O nosso Se­nhor acabara de ensinar aos Seus discípulos em Cesaréia de Filipos que Ele morreria nas mãos dos anciãos dos ju­deus, e, então, Pedro, com todo o seu amor pelo Seu Mestre, insurgiu-se e censurou-O, dizendo-Lhe: "Senhor não faças isso; tem pena de Ti:isso nunca Te acontecerá!' Levado pelo seu amor pelo Senhor, apelou para Ele, pa­ra que Se poupasse; e o Senhor repreendeu Pedro como se estivesse repreendendo Satanás, por cogitar das coisas dos homens e não das coisas de Deus (Mc 8.31-33). Fa­lou então uma vez mais a todos os presentes, nestes ter­mos: "Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se ne­gue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, sal­var a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á" (Mc 8.34,35).
Mais uma vez é a alma que está sendo focalizada, e aqui se trata especialmente do desejo da alma pela auto--preservação.Há aquela atuação sutil da alma que diz: "Se me fosse permitido viver, faria tudo, estaria pronto a tudo; devo certamente, ser conservado vivo". E assim temos a alma quase gritando por socorro: "Ir à Cruz, ser crucificado — isso é realmente demais! Tem miseri­córdia de ti mesmo; tem pena de ti! Queres dizer que vais contra ti mesmo a fim de ires com Deus? " Alguns de nós sabemos bem que, a fim de prosseguir com Deus, muitas vezes é preciso ir contra a voz da alma — a nossa própria ou a de outras pessoas — e deixar a Cruz intervir para silenciar aquele apelo por auto-preservação.
Tenho eu receio da vontade de Deus? Aquela querida santa que mencionei, e que tanta influência teve na mi­nha vida, perguntou-me, muitas vezes: "Gosta da vonta­de de Deus? " É uma pergunta tremenda. Não pergun­tou: "Faz a vontade de Deus? " A pergunta sempre era: "Gosta da vontade de Deus? " Esta pergunta vai sondan­do mais profundamente do que qualquer outra. Recor­do-me de que, certa vez, ela tinha uma controvérsia com o Senhor a respeito de determinado assunto. Sabia o que o Senhor desejava e, no seu coração, ela o desejava tam­bém. No entanto, era-lhe difícil, e ouvi-a orar da seguin­te maneira: "Senhor, confesso que não gosto do que Tu queres mas, por favor, não cedas ao meu sentimento. Espera apenas um pouco, Senhor, e eu me submeterei inteiramente a Ti". Ela não queria que o Senhor cedesse a ela, diminuindo o que exigia dela. Ela nada desejava senão agradar-Lhe.
Muitas vezes, temos que chegar ao ponto de nos dis­por a renunciar coisas que pensamos serem boas e precio­sas — sim, talvez mesmo as próprias coisas de Deus — pa­ra que a Sua vontade possa ser feita. A preocupação de Pedro era pelo seu Senhor, e foi-lhe ditado pelo seu amor por Ele. Podemos sentir que Pedro teve um amor mara­vilhoso pelo seu Senhor, suficiente para lhe dar ousadia para repreendê-Lo. Somente um forte amor poderia le­var alguém a fazer o que ele fez! Sim, mas quando há pureza de espírito, sem aquela mistura de alma, não se será levado a cometer aquele erro de Pedro. Reconhece­remos a vontade de Deus e verificaremos que é esta a única coisa com que o nosso coração se regozija. Então, não derramaremos uma lágrima sequer de simpatia pela carne. Sim, a Cruz faz um corte profundo, e aqui perce­bemos, mais uma vez, quão severamente ela tem que tra­tar com a alma.
Uma vez mais o Senhor Jesus trata do assunto da alma, em Lucas 17, esta vez em relação ao Seu regresso. Falando do "dia em que o Filho do homem se manifes­tar", Ele estabelece um paralelismo entre esse dia e "o dia em que Ló saiu de Sodoma" (w 29,30). Um pouco mais adiante, referiu-Se ao "arrebatamento" com pala­vras duas vezes repetidas: "um será tomado, e deixado o outro" (vv.34,35). Mas, entre a Sua referência à cha­mada de Ló de Sodoma, e a alusão que fez ao arrebata­mento, o Senhor profere aquelas memoráveis palavras: "Naquele dia quem estiver no eirado e tiver os seus bens em casa, não desça para tirá-los; e de igual modo quem estiver no campo não volte para trás. Lembrai-vos da mu­lher de Ló" (vv.31,32). Lembrai-vos da mulher de Ló! Por quê? Porque "Quem quiser preservar a sua vida, perdê-la-á; e quem a perder, de fato a salvará" (v.33).
Se não me engano, esta é a única passagem no Novo Testamento que fala da nossa reação à chamada do Arre­batamento. Podemos ter pensado que, quando o Filho do homem vier, seremos arrebatados automaticamente, pelo que lemos em I Co 15.51,52: "Transformados sere­mos todos, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta..." Comparando as duas passagens, o que lemos em Lucas deve pelo menos nos le­var a pensar profundamente, pela sua forte ênfase no fa­to de um ser tomado e outro deixado. Trata-se da nossa reação à chamada, fazendo-se apelo muito urgente no sentido de estarmos prontos (comparar Mt 24.42).
Há, seguramente, uma razão que explica isto. Eviden­temente que aquela chamada não vai produzir em nós uma mudança miraculosa no último minuto, indepen­dentemente de toda a nossa relação prévia com o Senhor. Não, naquele momento, descobriremos o verdadeiro te­souro do nosso coração. Se é o Senhor mesmo, então não haverá um olhar para trás. Um relance para trás de­cide tudo. É tão fácil ficar mais apegado aos dons de Deus do que ao próprio Doador — e até, acrescentaria, mais ligado ao trabalho de Deus do que a Deus mesmo.
É uma questão de vivermos pela alma ou pelo Espíri­to. Aqui nesta passagem, em Lucas, descreve-se a vida da alma com seus compromissos com as coisas da terra — e, note-se, coisas que não são pecaminosas. O Senhor apenas mencionou casar, semear, comer, vender — todas atividades perfeitamente legítimas em que não há, essen­cialmente, coisa alguma errada. Mas é a ocupação com as mesmas, ao ponto de o coração se lhes prender, que é suficiente para nos prender aqui em baixo. O caminho de saída deste perigo é por meio de se perder a alma. Encontramos uma bela ilustração disto na ação de Pedro, quando reconheceu o Senhor Jesus ressurreto nas mar­gens do lago. Embora ele regressasse com os outros ao seu emprego inicial, agora já não pensava no barco, nem sequer nas redes cheias de peixes, tão miraculosamente pescados. Quando ouviu o grito de reconhecimento de João: "É o Senhor", lemos que ele "lançou-se ao mar".
Este é um verdadeiro desapego das coisas. A questão em causa é sempre: onde está o meu coração? A Cruz tem que operar em nós um verdadeiro desapego espiri­tual de tudo e de todos quando é o próprio Senhor que está em causa.
Mesmo nesta situação, entretanto, ainda se trata dos aspectos mais exteriores da atividade da alma. A alma dando largas às suas afeições, a alma impondo-se querendo manipular as coisas, a alma que se preocupa com as coisas da terra: estas pequenas coisas ainda não che­gam ao âmago da questão. Há algo ainda mais profundo que agora procurarei explicar.

A Cruz e a vida frutífera

Leiamos, de novo, João 12.24,25: "Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida (no Grego, "alma", como nas passagens anteriores) perdê-la-á; mas aquele que odeia a sua vida (alma) neste mundo, preservá-la-á para a vida eterna".
Trata-se aqui da operação interior da Cruz que já men­cionamos, ou seja, a perda da alma, relacionada e asseme­lhada com o aspecto da morte do Senhor Jesus Cristo que já vimos sob o símbolo do grão de trigo, a morte visando a frutificação. Há um grão de trigo com vida em si mes­mo mas "ele fica só". Tem o poder de comunicar vida a outros; mas, para fazê-lo, tem que descer às profundezas da morte.
Ora, sabemos o caminho que o Senhor Jesus tomou. Ele passou pela morte e, como já vimos, a Sua vida emer­giu em muitas vidas. O Filho morreu e apareceu como o primeiro de "muitos filhos". Ele deu a Sua vida para que pudéssemos recebê-la. É neste aspecto da Sua morte que somos chamados a morrer. É a este respeito que Ele tor­na claro o valor de nos conformarmos com a Sua morte, o que equivale a dizer que perdemos a nossa própria vida natural, a nossa alma, para que possamos tornar-nos transmissores de vida, partilhando depois com os outros a nova vida de Deus que está em nós. Este é o segredo do ministério. O caminho da verdadeira frutificação para Deus. Como Paulo diz: "Porque nós, que vivemos, so­mos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. De modo que em nós opera a morte; mas em vós, a vida" (II Co 4.11,12).
Se aceitamos a Cristo, há nova vida em nós. Todos te­mos aquela possessão preciosa, o tesouro no vaso. Graças a Deus pela realidade da Sua vida em nós! Mas, por que essa vida não se expressa mais? Por que esta vida não está manando abundantemente, comunicando vida aos outros? Por que se manifesta tão pouco mesmo nas nos­sas próprias vidas? A razão por que há tão pouco sinal de vida, onde a vida está presente, é que a alma, em nós, envolve e limita essa vida (como a casca envolve o grão de trigo), de modo que ela não consegue achar saída. Estamos vivendo pela alma, trabalhando e servindo na nossa própria força natural, ao invés de derivar de Deus os nossos recursos. É a alma que impede a vida de emanar. Percamos a alma, porque nesse caminho se encontra a plenitude.

Uma noite escura — uma manhã de ressurreição

Voltemos à vara de amendoeira que foi trazida ao santuário por uma noite — uma noite escura em que na­da havia que se visse — e que de manhã tinha florescido. Ali temos manifestadas a morte e a ressurreição, a vida rendida e a vida ganha, e ali temos o ministério com­provado. Mas como opera isto na prática? Como é que reconheço que Deus está agindo desta maneira comigo?
Em primeiro lugar devemos ser claros a respeito de uma coisa: a alma com o seu fundo de recursos e ener­gias naturais,continuará até a nossa morte. Até então, haverá a interminável e diária necessidade de a Cruz ope­rar em nós, dragando profundamente aquela fonte natu­ral que sempre está manando. Esta é a condição do servi­ço, válida para toda a vida, que se expressa pelas palavras: "A si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me" (Mc 8.34). Nunca poderemos dispor dela. Aquele que se evade aquela condição, "não é digno de mim" (Mt 10. 38); e, "não pode ser meu discípulo" (Lc 14.27). A morte e a ressurreição devem permanecer como um prin­cípio das nossas vidas para a perda da alma e a manifesta­ção do Espírito.
Todavia, pode haver também aqui uma crise que, uma vez ultrapassada, pode transformar toda a nossa vi­da e serviço para Deus. É uma porta estreita pela qual podemos entrar num caminho inteiramente novo. Uma crise desta natureza ocorreu na vida de Jacó em Peniel. Era o "homem natural", em Jacó, que procurava servir a Deus e alcançar os Seus propósitos. Jacó bem sabia que Deus dissera: "O mais velho servirá o menor", mas ele procurava alcançar este objetivo por meio da sua própria sutileza e dos seus recursos. Deus tinha que inva­lidar aquela força natural em Jacó, o que se deu quando tocou no nervo da sua coxa; daí em diante, Jacó conti­nuou a andar, mas permaneceu coxo. Era um Jacó dife­rente, como se infere da mudança do seu nome. Tinha pés e podia usá-los, no entanto, a sua força fora tocada e ele coxeava por causa de um mal de que nunca se res­tabeleceria completamente.
Deus tem que nos levar a tal ponto que não ousemos confiar em nós mesmos, e isso fará, de uma maneira ou de outra, ferindo profundamente o nosso poder natural por meio de uma experiência profunda e amarga. Ele te­ve que tratar asperamente com alguns de nós, levando-nos por caminhos difíceis e dolorosos, a fim de nos levar a tal situação. Finalmente, chega o ponto de não "gos­tarmos" mais de fazer o trabalho cristão — até quase receamos fazer coisas em nome do Senhor. Mas então, finalmente, é que Ele pode começar a nos usar.
Posso mencionar que, durante um ano depois que fui convertido, tinha um desejo veemente de pregar. Era-me impossível ficar em silêncio. Era como se houvesse qual­quer coisa movendo-se dentro de mim, impelindo-me pa­ra a frente, e eu tinha que continuar. A pregação torna­ra-se a minha própria vida. O Senhor pode graciosamente permitir-nos andar algum tempo nestas condições - e não somente isso, mas com uma certa medida de bênção até que um dia, essa força natural que nos impelia é to­cada, e, desde então, já não o fazemos porque o deseja­mos fazer, mas porque o Senhor o deseja. Antes dessa experiência, pregávamos por causa da satisfação que obtínhamos em servir a Deus dessa maneira; e, contudo, o Senhor não podia mover-nos a fazer uma única coisa que Ele desejava que fizéssemos. Vivíamos pela vida na­tural, e esta vida varia bastante. É escrava do nosso tem­peramento. Quando estamos emocionalmente resolutos quanto a fazer a Sua vontade, avançamos a plena veloci­dade, mas quando as nossas emoções estão dirigidas para outro caminho, ficamos muito relutantes em nos mo­vermos, mesmo quando o dever nos chama. Não somos maleáveis nas mãos do Senhor. Assim, Ele precisa enfra­quecer em nós aquela força que prefere ou deixa de pre­ferir, que gosta ou deixa de gostar, até que façamos uma coisa porque Ele assim deseja, e não porque gostamos dela. Podemos ter ou não ter gosto nessa coisa, mas a faremos da mesma forma. Não se trata de encontrarmos certa satisfação em pregar ou em fazer este ou aquele trabalho para Deus e, portanto, fazemo-lo. Não! faze­mo-lo agora porque é da vontade de Deus, e não porque nos dá ou deixa de nos dar alegria consciente. A verda­deira alegria que conhecemos por fazer a Sua vontade, tem raízes mais profundas do que as nossas emoções variáveis.
Deus quer nos levar ao ponto de respondermos instan­taneamente quando Ele expressa o mínimo desejo. É este o espírito do Servo (SI 40.7,8), mas um espírito desta na­tureza não se manifesta naturalmente em qualquer de nós. Manifesta-se apenas quando a nossa alma, a sede das nos­sas energias naturais, da nossa vontade e das nossas afei­ções, conhece o toque da Cruz. Todavia, o que Ele bus­ca e quer ter em todos nós, é semelhante espírito de ser­vo. O caminho para chegar a isto talvez seja, para alguns de nós, um processo longo e doloroso, ou talvez resulte de determinada experiência; Deus tem os Seus caminhos e nós devemos respeitá-los.
Todo o verdadeiro servo de Deus deve conhecer, em alguma ocasião, aquela capacidade de que já se despediu, e que agora passou a ser incapacidade; jamais poderá vol­tar a ser exatamente o mesmo. Aquela experiência de perder a nossa capacidade natural, humana, deve ser de tal forma que doravante recearemos, realmente, fazer coi­sa alguma por nós mesmos. Como Jacó, saberemos qual seria a intervenção soberana de Deus se procurássemos fazer alguma coisa por conta própria, e qual seria a triste experiência do nosso coração perante o Senhor, se nos movêssemos sob o impulso da nossa alma. Já tivemos experiência da mão punitiva de um Deus que "nos trata como filhos" (Hb 12.7). O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos, e que a herança e a glória nos pertence se "com ele padecemos" (Rm 8.16, 17); e a nossa resposta ao "Pai dos nossos espíritos" é: "Abba, Pai".
Quando isto fica realmente estabelecido em nós, che­gamos a uma nova posição de que falamos como "o ter­reno da ressurreição". Pode ser que a morte tenha opera­do em nós ao ponto de resultar numa crise para a nossa vida natural, mas quando assim acontece, verificamos de­pois que Deus nos liberta para a ressurreição. Descobri­mos que o que perdemos está voltando, embora não co­mo antes. O princípio de vida está em operação em nós agora, é algo que nos dá poder e nos fortalece, algo que nos anima, dando-nos vida. Daqui em diante, o que per­demos será recuperado — mas agora sob disciplina, sob domínio.
Permita-se-me esclarecer isto muito bem. Se desejar­mos ser pessoas espirituais, não precisaremos amputar as mãos ou os pés; ainda podemos ter o nosso corpo. Da mesma maneira, podemos ter a nossa alma, com o uso pleno das suas faculdades e, todavia, a alma já não é a fonte de onde emana a nossa vida. Já não vivemos nela, não derivamos dela a nossa força, os nossos recursos, já deixamos de viver por ela: apenas fazemos uso dela. Quando o corpo é a nossa vida, vivemos como animais. Quando a alma se torna a nossa vida, vivemos como rebel­des e fugitivos de Deus — dotados, cultos, educados, sem dúvida, mas separados da vida de Deus. Mas, quando che­gamos a viver a nossa vida no Espírito e pelo Espírito, embora ainda usemos as faculdades da nossa alma, exa­tamente como fazemos com as faculdades físicas, elas agora são servos do Espírito e quando atingimos este ponto, Deus pode realmente usar-nos.
A dificuldade, porém, para muitos de nós, está naquela noite escura. O Senhor graciosamente me pôs de lado uma vez na minha vida, durante vários meses, deixando-me, espiritualmente, em densas trevas. Era qua­se como se Ele me tivesse abandonado — quase como se nada estivesse acontecendo e eu tivesse realmente chega­do ao fim de tudo. E depois, por fases, Ele tornou a tra­zer as coisas. A tentação é sempre procurar ajudar a Deus, reavendo as coisas por nós mesmos; mas, lembremo-nos, tem que haver uma noite inteira passada no Santuário, uma noite de trevas, e esta experiência não pode ser apressada; Ele sabe o que faz.
Gostaríamos de ter a morte e a ressurreição reunidas com apenas uma hora de intervalo. Não podemos supor­tar o pensamento de que Deus nos ponha de parte du­rante tanto tempo; não temos paciência para esperar. E eu não posso dizer quanto tempo Ele levará, mas, em princípio, penso que podemos dizer, com certeza, que haverá um período definido, em que Ele nos conservará assim. Parecerá como se nada acontecesse; tudo aquilo que consideramos de valor vai fugindo para longe do nosso alcance. Perante nós fica como uma parede bran­ca, sem porta alguma. Parece que todas as outras pessoas estão sendo abençoadas e usadas, enquanto que nós pró­prios fomos ultrapassados e achamo-nos derrotados. Per­maneçamos quietos. Tudo está em trevas, mas é apenas durante uma noite. Tem que ser uma noite total, mas é só isso. Depois, verificaremos que tudo nos é restituído numa gloriosa ressurreição, e coisa alguma pode medir a diferença entre o que foi antes e o que agora é!
Estava um dia sentado, ao almoço, com um jovem irmão a quem o Senhor falara sobre este mesmo assunto das nossas energias naturais. Ele disse-me: "É coisa aben­çoada saber que o Senhor veio ao nosso encontro e nos tocou desta forma fundamental, e que recebemos esse toque que nos torna incapazes de tudo". Havia um pra­to de biscoitos entre nós, na mesa, e peguei num e parti-o ao meio como se fosse comê-lo, Depois, unindo os dois pedaços, outra vez, com todo o cuidado, disse: "Tudo parece estar perfeitamente bem, mas nunca mais será o mesmo, não é? Uma vez que se quebre a nossa espinha dorsal, submeter-nos-emos ao mais ligeiro toque de Deus".
E é assim. O Senhor sabe o que está fazendo com aqueles que Lhe pertencem, e não deixará de providenciar, por meio da Sua Cruz, os suprimentos para todo e qualquer aspecto da nossa necessidade, para que a glória do Filho possa manifestar-se nos filhos. Os discípulos que já percorreram este caminho podem fazer eco since­ro às palavras de Paulo, quando este afirmava: "Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho" (Rm 1.9). Aprenderam, como ele, o segredo de tal mi­nistério: "Nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne" (Fp3.3).
Poucos podem ter tido uma vida mais ativa do que a de Paulo. Aos romanos declara que pregou o Evangelho de Jerusalém até Ilírico (Rm 15.19) e que agora está pronto a ir a Roma (1.10) e daí, se possível, à Espanha (15.24,28). Todavia, em todo este serviço, que abrange todo o mundo do Mediterrâneo, o seu coração está posto num único objetivo — a glorificação dAquele que tudo tornou possível. "Tenho, pois, motivo de gloriar-me em Cristo Jesus nas coisas concernentes a Deus. Porque não ousarei discorrer sobre coisa alguma senão daquelas que Cristo fez por meu intermédio, para conduzir os gentios à obediência, por palavra e por obras" (Rm 15. 17,18). Isto é serviço espiritual.
Que Deus possa fazer de cada um de nós, tão verda­deiramente como era Paulo, "Um escravo de Jesus Cristo".

Desperdício

"Estando ele [Jesus] em Betânia, reclinado à mesa em casa de Simão, o leproso, veio uma mulher que trazia um vaso de [alabastro] cheio de bálsamo de nardo puro, de grande preço; e, quebrando o vaso, derramou-lhe sobre a cabeça o bálsamo." (Mc 14.3).

A mulher quebrou um vaso cheio de bálsamo, cujo valor era de 300 denários, e derramou-o todo sobre o Senhor. Para o raciocínio humano, isto era realmente demais, da­va-se ao Senhor mais do que Lhe era devido. Foi por isso que Judas tomou a dianteira, com o apoio dos outros dis­cípulos, e deu voz à reclamação geral de que a ação de Maria representava um grande desperdício.
"Indignaram-se alguns entre si, e diziam: Para que este desperdício de bálsamo? Porque este perfume po­deria ser vendido por mais de trezentos denários, e dar-se aos pobres. E murmuravam contra ela" (Mc 14.4,5). Estas palavras nos levam àquilo que, segundo creio, está implícito na palavra "desperdício", e que o Senhor quer que consideremos.
O que é desperdício? Desperdício significa, entre outras coisas, dar mais do que é necessário. Se bastam quatro cruzeiros e nós damos oitenta, isso é desperdício. Se bastam duzentos e cinqüenta gramas, e nós damos um quilo, também é desperdício. Se bastam três dias pa­ra acabar uma tarefa, e nós levamos cinco dias ou uma semana para realizá-la, é mais um tipo de desperdício. Desperdício é dar algo demasiado por alguma coisa de reduzida importância. Se alguém recebe mais do que aquilo que se considera ser o valor em pauta, isso é des­perdício.
Aqui, porém, estamos tratando de algo que o Senhor queria que fosse proclamado juntamente com o Evange­lho, como se a pregação do Evangelho resultasse em algo muito semelhante àquilo que Maria fez: que as pessoas se cheguem a Ele e se desperdicem por amor dEle. É este o resultado que Ele procura alcançar.
Podemos considerar de dois pontos de vista este as­sunto de nos desperdiçarmos por amor do Senhor: o de Judas (João 12.4-6) e o dos outros discípulos (Mt 26.8, 9); para este propósito, examinaremos as duas narrativas em paralelo.
Todos os doze pensaram que era um desperdício. Pa­ra Judas, evidentemente, que nunca chamou a Jesus "Se­nhor", tudo quanto fosse derramado sobre Ele representaria um desperdício. Não somente o ungüento, como também a própria água teria sido um desperdício. Nes­te aspecto, Judas representa o mundo. Na estimativa do mundo, o serviço do Senhor e a entrega de nós mesmos a Ele, para o Seu serviço, é um desperdício completo. Ele nunca foi amado, nunca teve lugar nos corações do mundo, de modo que qualquer coisa dada a Ele é um desperdício. Muitos dizem: "Fulano pode­ria ser de grande valor no mundo, se não fosse crente". Se um homem tem algum talento natural, ou qualquer outra vantagem aos olhos do mundo, consideram ser uma vergonha para ele, estar servindo ao Senhor. Pen­sam que tais pessoas são realmente demasiadamente boas para o Senhor. "Que desperdício de uma vida tão útil!" - dizem.
Vou apresentar um exemplo pessoal. Em 1929 re­gressava de Xangai à cidade onde residia, Foochovv. Certo dia, caminhava ao longo da rua com uma benga­la, muito fraco e com a minha saúde abalada, e encon­trei-me com um dos velhos professores da escola. Ele me levou a um salão de chá onde nos sentamos. Olhou para mim, da cabeça aos pés e dos pés à cabeça, e de­pois disse: "Olhe, enquanto você estava no colégio, tí­nhamos as melhores esperanças para você, pensando que você realizaria algo de grandioso. Será realmente isto, o que você veio a ser agora?" Olhando para mim, com os seus olhos penetrantes, fez esta pergunta direta. Devo confessar que, ao ouvi-lo, o meu primeiro desejo foi o de me desfazer em lágrimas. A minha carreira, a minha saúde, tudo se fora, tudo se perdera, e aqui estava o meu velho professor, que me ensinava direito na escola, perguntando: "Ainda se encontra nestas con­dições, sem êxito, sem progresso, sem qualquer coisa que possa mostrar? "
Mas naquele mesmo momento — e tenho que reco­nhecer que foi a primeira vez em toda a minha vida que isto aconteceu — conheci realmente o que signifi­ca ter o "Espírito da glória" repousando sobre mim. Só pensar que eu pudesse derramar a minha vida por amor do meu Senhor inundou a minha alma de glória.
Nada menos do que o próprio Espírito da glória paira­va então sobre mim. Pude olhar para cima e, sem re­servas, dizer: "Senhor, eu louvo o Teu nome! Isto é a melhor coisa possível; é a carreira acertada que eu esco­lhi!" Ao meu professor, parecia um desperdício total eu dedicar a minha vida ao serviço do Senhor; mas é jus­tamente isto que o Evangelho faz — nos leva a avaliar de maneira certa o valor do nosso Senhor.
Judas sentiu que era um desperdício. "Poderíamos usar melhor o dinheiro, aplicando-o de outra forma. Há tanta gente pobre. Por que não dar o dinheiro a alguma caridade, fazer algum trabalho social para o alívio dos necessitados, auxiliar os pobres de alguma maneira prática? Por que derramar todo este valor aos pés de Jesus? " (Ver João 12.4-6). É sempre desta for­ma que o mundo pensa. "Você não pode fazer alguma coisa melhor com a sua vida do que isso? Dar-se assim inteiramente ao Senhor é ir longe demais!"
Se o Senhor é digno, como pode isso ser um des­perdício? Ele é digno de ser servido desta maneira. Ele é digno de que eu seja Seu prisioneiro. Ele é digno de que eu viva somente para Ele. O que o mundo diz a respeito não importa, porque Ele é digno. O Senhor disse: "Deixai-a!" Não nos perturbemos, portanto. Seja o que for que o mundo disser, nós poderemos nos fir­mar nesta base, porque o Senhor disse: "É uma boa obra. Toda a verdadeira boa obra não é a que se faz aos pobres; toda a boa obra é a que é feita a Mim". Uma vez que os nossos olhos tenham sido abertos para o real valor do nosso Senhor Jesus, coisa alguma será boa demais para Ele.
Não quero, porém, me demorar muito com Judas. Vamos ver qual foi a atitude dos outros discípulos, porque a reação deles nos afeta muito mais do que a dele. Não nos importamos grandemente com o que o mundo diz; podemos enfrentá-lo facilmente, mas importamo-nos muito com o que dizem outros cristãos, que deveriam compreender o gesto de Maria. Verifica­mos, contudo, que os outros discípulos disseram a mesma coisa que Judas, e além disto, ficaram perturbados e muito indignados com o acontecido. "Vendo isto, indignaram-se os discípulos e disseram: Para que este desperdício? Pois este perfume podia ser vendido por muito dinheiro, e dar-se aos pobres" (Mt 26.8,9).
Evidentemente, sabemos que atitudes mentais desta natureza são muito comuns entre cristãos que dizem: "Obtenhamos tudo quanto pudermos com o menor esforço possível". Não é somente com estas atitudes que se trata aqui. O assunto vai mais profundo, como quando alguém nos diz que estamos desperdiçando a nossa vida por ficarmos quietos, sem fazer muita coisa. Dizem: "Estas pessoas devem lançar-se a este ou àque­le tipo de trabalho. Podiam ser usados para auxiliar este ou aquele grupo. Por que não são mais ativas? ". E, ao dizê-lo, toda a sua idéia de utilidade é o que se evidencia. Tudo deve ser plenamente utilizado da for­ma que eles próprios entendem.
Pessoas desta natureza se sentem muito preocupadas, a este respeito, com alguns servos amados do Senhor que, aparentemente, não estão fazendo o suficiente. Podiam fazer muito mais, pensam, se conseguissem entrar nalgum lugar onde ganhariam maior aceitação e proeminência em certos círculos. Podiam então ser usa­dos de forma muitíssimo maior. A irmã de que falei foi muito usada para me ajudar neste ponto; foi usada pelo Senhor, de forma muito real, durante aqueles anos em que a conheci, embora eu não soubesse re­conhecer quão grande obreira do Senhor ela era, a preocupação do meu coração era esta: "Ela não está sendo usada!" Dizia constantemente a mim mesmo: "Por que é que ela não sai para fazer reuniões, não vai a parte alguma, fazer alguma coisa? E um desper­dício de tempo ela viver nesta pequena aldeia onde nada acontece". Às vezes, quando ia visitá-la, quase gritava com ela. Dizia-lhe eu: "Ninguém conhece o Se­nhor como a irmã. A irmã conhece o Livro de uma maneira absolutamente viva. Não vê as necessidades à sua volta? Por que não faz qualquer coisa? É um des­perdício de tempo, um desperdício de dinheiro, um desperdício de tudo, ficar aqui e não fazer nada!"
Não, irmãos, o fazer não é o principal para o Senhor. É certo que Ele deseja que você e eu sejamos usados. Deus me livre de pregar a inatividade ou de justificar uma atitu­de complacente perante as necessidades do mundo. Como diz o próprio Jesus, "o Evangelho será pregado por todo o mundo". A questão, porém, é de ênfase. Hoje, reconsi­derando o passado, entendo que o Senhor usou grande­mente aquela querida irmã para falar a um certo número de nós que, como jovens, estávamos naquela altura na Sua escola de aprendizagem para este trabalho do Evange­lho. Não posso agradecer suficientemente a Deus por ela.
Qual é, pois o segredo? E que, ao aprovar a ação de Maria em Betânia, o Senhor Jesus estava estabelecendo um princípio como base de todo o serviço: que derrame­mos tudo o que temos, nos derramemos a nós mesmos, para Ele; e se isso for tudo o que Ele nos conceder que façamos, é suficiente. O mais importante não é se os "po­bres" são ou não ajudados. O mais importante é: O Senhor ficou satisfeito?
Há muitas reuniões em que poderíamos falar, muitas convenções em que poderíamos ministrar, muitas campa­nhas evangelísticas em que poderíamos tomar parte. Não é que não sejamos capazes de o fazer. Poderíamos traba­lhar e ser usados ao máximo; mas o Senhor não sente tan­ta preocupação acerca da nossa incessante ocupação no Seu trabalho. Não é este o Seu objetivo principal. Não se mede o serviço do Senhor por resultados tangíveis. Não, meus amigos, a primeira preocupação do Senhor é com a nossa posição aos Seus pés e com a nossa atitude de ungir a Sua cabeça. Seja o que for que tivermos como "vaso de alabastro": a coisa mais preciosa, a coisa mais querida para nós no mundo — sim, digo, tudo quanto pudermos ofere­cer a partir de uma vida vivificada pela própria Cruz - da­mos isso tudo ao Senhor. Para alguns, mesmo para aque­les que deveriam compreendê-lo, parece um desperdício; mas isso é o que Ele busca acima de tudo. Muitas vezes, o que Lhe damos expressar-se-á em serviço incansável, mas Ele Se reserva o direito de suspender o serviço por um tempo, a fim de nos revelar se é o serviço, ou Ele mesmo, que nos empolga.

Ministrando para o Seu beneplácito

"Onde for pregado em todo o mundo o evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua" (Mc 14.9).
Por que disse o Senhor isto? Porque é este o resultado que o Evangelho procura produzir. O Evangelho serve jus­tamente para isto. O Evangelho não é apenas para satisfa­zer os pecadores. Graças a Deus que os pecadores serão satisfeitos! Podemos, no entanto, chamar esta satisfação de bendito sub-produto do Evangelho, e não o seu alvo primário. O Evangelho é pregado, em primeiro lugar, para que o Senhor possa ficar satisfeito.
Parece que ressaltamos demasiadamente o bem dos pe­cadores, e que não temos apreciado suficientemente o que o Senhor tem em vista como o Seu objetivo. Temos pen­sado no que sucederia ao pecador se não houvesse Evange­lho, mas esta não é a consideração principal. Sim. graças a Deus! O pecador tem a sua parte. Deus satisfaz, a sua necessidade c derrama sobre ele chuvas de bênçãos; mas. isto não é o mais importante. O mais importante é que tudo deve ser entendido do ponto de vista da satisfação do Filho de Deus. E somente quando Ele fica satisfeito que nós também ficaremos satisfeitos c que o pecador fi­cará satisfeito. Jamais encontrei uma alma que se tenha proposto satisfazer o Senhor e que não tenha, ela própria, encontrado satisfação. E impossível. A nossa satisfação resulta infalivelmente de satisfazermos a Ele primeiro.
Mas temos que recordar-nos de que Ele nunca ficará satisfeito sem que nos desperdicemos (como diz o mun­do) por Ele. Você já deu demasiado ao Senhor? Posse dizer-lhe uma coisa? Uma lição que alguns de nós temos aprendido é esta: que no serviço divino o princípio de nos gastarmos é o princípio do poder. O princípio que deter­mina a utilidade é exatamente o princípio de nos espa­lharmos. A verdadeira utilidade nas mãos de Deus mede-se em termos de "desperdício". Quanto mais pensarmos que podemos fazer, e por mais que empreguemos os nos­sos dons até aos limites máximos (e alguns ultrapassam mesmo os limites) a fim de fazê-lo, tanto mais descobrire­mos que estamos aplicando o princípio do mundo e não o do Senhor. Os caminhos de Deus, a nosso respeito, são to­dos designados para estabelecer em nós este outro princi­pio: que o nosso trabalho para Ele resulta de nós minis­trarmos a Ele. Não quer dizer que vamos ficar sem fazer coisa alguma; todavia, a primeira coisa para nós deve ser o Senhor mesmo e não o Seu trabalho.
Devemos, porém, descer a questões de ordem muito prática. Você poderá dizer: "Abandonei uma posição; abandonei um ministério; renunciei a certas possibilidades atraentes de um futuro brilhante, procurando assim andar mais perto do Senhor. Agora, na minha tentativa de ser­vir ao Senhor, parece que às vezes o Senhor não me ouve, e que às vezes Ele não dá à minha obra os resultados que procurei. Assim, vou me comparando a certo amigo que tinha futuro igualmente brilhante, que não abandonou, e que agora trabalha numa grande empresa, exercendo tam­bém um ministério de meio período. Nesta obra, ele vê almas sendo salvas, e a bênção de Deus sobre seu ministé­rio, tendo sucesso tanto material como espiritual. Parece mais crente de que eu, tão feliz, tão satisfeito! Qual van­tagem espiritual tiro da minha dedicação? Ele fica livre das dificuldades e complicações que enfrento, e ainda é considerado espiritualmente próspero. Será que eu desper­dicei a minha vida, que realmente dei demais? "
Colocando o problema assim, você sente que se seguis­se os passos daquele outro irmão — digamos, se se consa­grasse suficientemente para a bênção, mas não o bastante para a tribulação, suficientemente para o Senhor usá-lo, mas não o bastante para que Ele o deixasse inativo — tudo estaria perfeitamente bem. Mas estaria, mesmo? Sabe perfeitamente bem que não.
Olhe para o seu Senhor e pergunte-se de novo o que é que Ele considera de mais valor. O principio de nos gas­tarmos é o principio que Ele quer que nos governe. "Ela fez isto por Mim". O coração do Filho de Deus experimenta real satisfação somente quando realmente nos entrega­mos a Ele de tal maneira total que, segundo uns diriam, estamos sendo desperdiçados — dando muito e recebendo pouco — só procurando agradar a Deus.
Oh, meus amigos, o que buscamos nós? Estamos procurando a utilidade que se mede em efeitos visíveis, como aqueles discípulos faziam? Desejavam tirar o máximo proveito de cada centavo daqueles 300 denários. Toda a questão consistia em "utilidade" óbvia, em termos que podiam medir-se e ser registrados. O Senhor espera ouvir-nos dizer: "Senhor, eu não me importo com isso. Se ape­nas puder agradar-Te, isso me basta".

Ungindo-O antecipadamente

"Deixai-a; por que a molestais? Ela praticou boa ação para comigo. Porque os pobres sempre os tendes convosco e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem, mas a mim nem sempre me tendes. Ela fez o que pôde: antecipou-se a ungir-me para a sepultura" (Mc 14.6-8).
Nestes versículos, o Senhor Jesus introduz o fator tem­po, com a palavra "antecipou-se", e isto é algo que pode­mos aplicar hoje de maneira diferente, porque é tão impor­tante para nós corno o foi então para ela. Todos sabemos que, na idade vindoura, seremos chamados a um trabalho maior — e não à inatividade. "Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei: entra no gozo do teu senhor" (Mt 25.21;comparar Mt 24.47 e Lc 19.17). Sim, haverá um trabalho maior; porque o traba­lho da casa de Deus continuará, assim como continuou, na narrativa, o cuidado pelos pobres. Os pobres sempre estariam com eles, mas eles não poderiam tê-Lo sempre a Ele. Houve alguma coisa, representada por este derrama­mento de ungüento, que Maria teve que fazer antecipada­mente, ou ela não teria oportunidade de o fazer mais tar­de. Creio que, naquele dia, amá-Lo-emos como nunca o fizemos até agora, e, contudo, que haverá maior bênção para aqueles que já derramaram o seu tudo sobre o Senhor hoje. Quando O virmos face a face, espero que todos quebrantaremos e derramaremos tudo sobre Ele. Mas hoje — o que estamos fazendo hoje?
Alguns dias depois de Maria ter quebrado o vaso de alabastro e ter derramado o ungüento sobre a cabeça de Je­sus, houve algumas mulheres que foram, de manhã cedo, para ungir o Corpo do Senhor. Mas fizeram-no elas? Con­seguiram realizar o seu propósito naquele primeiro dia da semana? Não, houve apenas uma alma que conseguiu un­gir o Senhor, e essa foi Maria, que O ungiu antecipada­mente. As outras nunca o fizeram, porque Ele ressuscita­ra. Ora, eu sugiro que a questão do tempo pode ser, de modo semelhante, também importante para nós, e que a questão toda para nós é: o que estou fazendo ao Senhor hoje?
Os nossos olhos têm sido abertos hoje para perceber a preciosidade dAquele a Quem servimos? Já reconhece­mos que somente o que nos é mais querido, caro e precio­so é digno de ser oferecido a Ele? Já compreendemos que o trabalho em favor dos pobres, o trabalho em benefício do mundo, o trabalho pelas almas dos homens e pelo bem eterno dos pecadores — coisas estas tão necessárias e va­liosas — apenas são boas quando colocadas em seus respec­tivos lugares? Em si mesmas, como objetos separados, são como nada, comparadas com o que é feito ao Senhor.
Nossos olhos devem ser abertos pelo Senhor para ver­mos o Seu valor. Se houver no mundo algum tesouro pre­cioso de arte e eu pagar o preço mais elevado pedido por ele, quer seja mil, dez mil, ou mesmo um milhão de cru­zeiros, ousaria alguém dizer que foi um desperdício? A idéia de desperdício apenas entra em nossa cristandade quando sub-estimamos o valor do nosso Senhor. A ques­tão é esta: Quanto vale Ele para nós, hoje? Se Lhe damos pouco valor, então, evidentemente, qualquer coisa que Lhe dermos, por pequena que seja, parecer-nos-á um grande desperdício. Mas quando Ele é, realmente, precio­sa jóia das nossas almas, nada será demasiado bom, nada demasiado caro para Ele; tudo o que temos, os nossos tesouros, de maior preço e de maior estima, derramare­mos sobre Ele e não nos sentiremos envergonhados por tê-lo feito.
A respeito de Maria, o Senhor disse: "Ela fez o que pode". O que significa isto? Significa que ela dera tudo. Não guardara coisa alguma para si, em reserva para o fu­turo. Derramou sobre Ele tudo o que tinha, e, todavia, na manhã da ressurreição, não tinha razão para lamentar a sua extravagância. E o Senhor não Se satisfará com qual­quer coisa inferior da nossa parte, até que nós também tenhamos feito o que podemos. Com isto, lembremo-nos, não me refiro ao gasto dos nossos esforços e energias, ao procurar fazer algo para Ele, porque este não é o caso. O que o Senhor Jesus espera de nós é uma vida depositada aos Seus pés, e isso em vista da Sua morte e sepultamento e de um dia futuro. O Seu sepultamento estava já em vista, naquele dia, no lar de Betânia. Hoje, é a Sua coroação que está em perspectiva, quando Ele será aclamado, em glória, como o Ungido, o Cristo de Deus. Sim, então derramare­mos tudo sobre Ele! Mas é coisa preciosa — muito mais preciosa para Ele — que O unjamos agora, não com qualquer óleo material, mas com alguma coisa que representa valor, algo emanado dos nossos corações.
Aquilo que é meramente externo e superficial não tem lugar aqui. Tudo isso foi solucionado pela Cruz, e nós já concordamos com o juízo de Deus quanto a isto, apren­dendo a conhecer na experiência a separação efetuada. O que Deus pede da nossa parte agora é representado pelo vaso de alabastro, algo extraído das profundezas, algo torneado, gravado e trabalhado, algo que, devido a falar-nos tão realmente do Senhor, estimamos como Maria estimava aquele frasco — e nós não queríamos, não ousa­ríamos quebrá-lo. Sai agora do nosso coração, do mais profundo do nosso ser; e chegamo-nos ao Senhor com o nosso "vaso" e quebramo-lo e derramamo-lo e dizemos: "Senhor, aqui está, é tudo Teu, porque Tu és digno!" — e o Senhor recebe o que desejava da nossa parte. Possa Ele receber semelhante unção proveniente de nós, hoje.

Fragrância

"E encheu-se toda a casa com o perfume do bálsamo" (João 12.3). Em virtude de se ter quebrado o vaso e da unção do Senhor Jesus, a casa foi penetrada da mais doce fragrância. Todos podiam cheirá-la e ninguém podia ficar inconsciente do cheiro. Qual é o significado disto?
Sempre que encontramos alguém que realmente sofreu — alguém que passou por experiências com o Senhor, que o trouxeram ao limite de si mesmo e que, em vez de pro­curar libertar-se, a fim de ser "usado", se prontificou a fi­car aprisionado por Ele, e aprendeu assim a achar satisfação no Senhor e em nada mais — ficamos então logo cônscios de alguma coisa. Imediatamente os nossos sentidos espirituais percebem um doce sabor de Cristo. Algo foi esmagado, algo foi quebrado naquela vida, e por isso po­demos cheirar o seu perfume. O perfume que encheu a casa naquele dia, em Betânia, ainda enche a Igreja hoje. A fragrância de Maria nunca passa. Apenas foi necessário dar uma pequena pancada para quebrar o vaso para o Se­nhor, mas aquele ato de quebrar o vaso e a fragrância da­quela unção ainda permanecem.
Estamos falando do que nós somos; não do que faze­mos ou do que pregamos. Talvez já há muito, pedimos ao Senhor que nos usasse para comunicar aos outros o reca­do dEle. Esta oração não é necessariamente um pedido para receber o dom de pregar ou de ensinar. Expressa antes o desejo de podermos, nas nossas relações com os outros, transmitir Deus,a presença de Deus, a percepção de Deus. Não podemos produzir tais impressões de Deus nos outros sem que tudo em nós tenha sido quebrado, mesmo as nossas preciosíssimas possessões, aos pés do Se­nhor Jesus.
Uma vez alcançada esta condição, Deus começará a usar-nos para criar nos outros uma sensação de fome espi­ritual, mesmo sem haver em nossas vidas demonstrações externas muito visíveis de estarmos empenhados em tão preciosa obra. As pessoas sentirão perto de nós o perfume de Cristo. O menor santo no Corpo senti-lo-á. Perceberá que está com alguém que tem andado com o Senhor, que tem sofrido, que não se tem movido livremente, indepen­dentemente, mas que já soube o que significa entregar to­das as coisas a Ele. Este gênero de vida cria impressões, e tais impressões produzem fome, e a fome leva os homens a continuar a sua busca até que são trazidos, por revela­ção divina, à plenitude de vida em Cristo.
Deus não nos põe aqui, primeiramente, para pregar, ou para fazer um trabalho para Ele. A primeira razão por que Ele nos põe aqui é para criar nos outros fome por Si mes­mo. É isso, acima de tudo, que prepara o terreno para a pregação.
Se pusermos um bolo delicioso perante dois homens que acabaram de ter uma lauta refeição, qual será a sua reação? Falarão acerca do bolo, admirarão o seu aspecto, discutirão a receita, falarão sobre o preço — farão tudo, afinal, menos comê-lo! Mas, se estiverem verdadeiramente com fome, não passará muito tempo sem que o bolo te­nha desaparecido. E o mesmo acontece com as coisas do Espírito. Não iniciará qualquer trabalho verdadeiro numa vida sem que, primeiramente, seja criado um sentimento de necessidade. Mas como pode isto ser feito? Não pode­mos empregar força para injetar apetite espiritual nos outros; não podemos obrigar as pessoas a terem fome. A fome tem que ser criada e pode ser criada nos outros apenas por aqueles que levam consigo impressões de Deus.
Sempre gosto de pensar nas palavras daquela "mulher rica" de Suném. Falando do profeta, que tinha observado mas a quem não conhecia bem, ela disse: "Vejo que este que passa sempre por nós é santo homem de Deus" (II Rs 4.9). Não foi o que Eliseu disse ou fez que lhe transmitiu tal impressão, mas o que ele era. Ela podia perceber algu­ma coisa, por ele passar simplesmente por ali. Ela podia ver. O que sentem as pessoas à nossa volta a nosso respei­to? Podemos deixar muitos tipos diferentes de impressão: talvez deixemos a impressão de sermos hábeis, de sermos prendados, de sermos isto ou aquilo; a impressão deixada por Eliseu, porém, foi mesmo uma impressão de Deus.
Esta questão da nossa influência sobre os outros depen­de de permitirmos que a Cruz faça em nós a sua obra total, até que possamos satisfazer ao coração de Deus. Requer que eu busque o Seu beneplácito, que procure satisfazer somente a Ele, e que eu não me importe de quanto isso me custe. A irmã de quem tenho falado, encontrou-se um dia em situação muito penosa para ela, que lhe custava tudo. Eu estava com ela naquela ocasião, e juntos, ajoelhamos e oramos com os olhos marejados de lágrimas. Olhando para cima, ela disse: "Senhor, estou pronta a quebrar o meu co­ração, a fim de poder dar satisfação ao Teu coração!" Fa­lar deste quebrantamento de coração poderia parecer a muitos de nós um sentimento meramente romântico mas, na situação especial em que ela se encontrava, significava exatamente isso.
Tem que haver alguma coisa — a prontidão em render-se, um quebrantamento e um derramamento de tudo para Ele — que liberte aquela fragrância de Cristo e produza noutras vidas a consciência de necessidade, atraindo-as e impelindo-as a prosseguir em conhecer o Senhor. É isto que eu sinto ser o coração de tudo. O Evangelho tem como objetivo produzir em nós, pecadores, uma condição que satisfaça o coração do nosso Deus, e, a fim de que Ele pos­sa ter essa satisfação, nós vimos a Ele com tudo o que te­mos, tudo o que somos — sim, mesmo as coisas mais que­ridas na nossa experiência espiritual — e apresentamo-nos a Ele nestes termos: "Senhor, estou pronto a abdicar de tudo isto por amor de Ti: não apenas pelo Teu traba­lho, nem pelos Teus filhos, nem por qualquer outra coisa, mas por Ti mesmo!"
Que maravilha, ser gasto! É coisa abençoada, ser gasto para o Senhor! Tantos que têm sido proeminentes no mundo cristão nada conhecem disto. Muitos de nós temos sido usados plenamente — temos sido usados, diria, dema­siadamente — mas não sabemos o que significa sermos desperdiçados para Deus. Gostamos de estar sempre ati­vos: o Senhor, algumas vezes, prefere ter-nos na prisão. Penso em termos das viagens apostólicas. Deus ousa por em cadeias os Seus maiores embaixadores.
"Graças, porém, a Deus que em Cristo sempre nos con­duz em triunfo, e, por meio de nós, manifesta em todo lugar a fragrância do seu conhecimento" (II Co 2.14).
"E encheu-se toda a casa com o perfume do bálsamo" (João 12.3).
O Senhor nos conceda graça para que possamos apren­der a agradar-Lhe. Quando, como Paulo, fizermos disto o nosso alvo supremo (II Co 5.9), o Evangelho terá realiza­do o seu propósito.
Os editores esperam que a leitura deste livro tenha sido de real valor na vida do leitor, e receberão de bom grado quaisquer comentários a respeito.

A Vida Cristã Normal

"O evangelho tem como seu objetivo pri­mordial produzir em nós, pecadores, uma condição que satisfaça ao coração de Deus".
Watchman Nee, que talvez seja o mais bem conhecido líder cristão que a China já pro­duziu, compartilhou com seus seguidores as verdades contidas em A VIDA CRISTÃ NORMAL, sem perceber que, em parte, pro­fetizavam elas sobre ele próprio.
Nesse livro, declara Nee: "Gostamos de estar sempre em atividade; mas algumas vezes o Senhor prefere que fiquemos numa prisão. Pensamos em termos de uma jornada apos­tólica (grande utilidade), porém Deus ousa lançar em cadeias a seus maiores embaixa­dores".
Este livro contém a útil orientação ofere­cida por um daqueles grandes embaixadores. Watchman Nee foi feito prisioneiro em 1952. Vinte anos de encarceramento, seguidos por sua morte, deram maior significado às suas palavras no livro.
"Senhor, estou pronto a deixar tudo isso por amor de Ti; não apenas por causa de teu trabalho, nem por teus filhos, ou por qualquer outra coisa, mas por amor de Ti."


* Palavra truncada (Nota de revisão).
* 4 palavras truncadas.

                                                  LucioFidalgo